Eduardo Baptista, um desconhecido tenente-coronel, conseguiu a proeza de, não sendo formalmente candidato, ter o seu nome nos boletins de voto das eleições presidenciais que nos entregarão no dia 24 de Janeiro. E, desta forma, expôs ao ridículo as instituições políticas nacionais. Fica a lição que ser-se anti-sistema não é forçosamente gritar acusações populistas aos quatro ventos. Também pode ser simplesmente isto: mostrar ao país como o dito sistema se converteu num absurdo — por estar caduco, refém da sua própria burocracia e enquadrado por leis bizantinas que nada têm que ver com os nossos tempos.

Vale a pena explanar o enredo desta história. Eduardo Baptista criticou, desde a primeira hora, os requisitos de elegibilidade das candidaturas presidenciais. No seu entender, a exigência de 7500 assinaturas de apoio corresponde a “uma fraude eleitoral”, na medida em que impede cidadãos comuns de ir a votos — favorecendo aqueles que tiverem máquinas partidárias por detrás. Então, como forma de protesto, apresentou a sua candidatura à Presidência da República com apenas 11 assinaturas (das quais só 6 são válidas), aproveitando um alçapão na lei: a apresentação das candidaturas não obriga a que todos os requisitos de elegibilidade estejam preenchidos até ao prazo-limite de entrega da documentação (24 de Dezembro). Desta forma, Eduardo Baptista inscreveu-se como candidato, apesar das 7494 assinaturas em falta e demais irregularidades.

Num país normal, a sua candidatura seria rapidamente rejeitada. Mas, como nos lembram sucessivamente, somos um país especial. Daí a pergunta: o que impede então que a sua candidatura seja riscada em tempo útil e o seu nome desconsiderado para a elaboração dos boletins de voto? Resposta: a burocracia do Estado.

Enquanto o Tribunal Constitucional fez a verificação da documentação entregue e solicitou a devida regularização das múltiplas falhas no processo de candidatura de Eduardo Baptista, o Ministério da Administração Interna (MAI) ordenou a impressão dos boletins de voto, na ordem que saiu do sorteio, que colocou o nome de Eduardo Baptista em primeiro lugar. Esta sobreposição de decisões foi fatal. Como era óbvio que aconteceria, ao tenente-coronel foi pedido que completasse o seu dossier com as assinaturas em falta — o que não fará, ficando excluído da corrida eleitoral. No entanto, os boletins manter-se-ão como estão, com o seu nome no cimo. Consequência: no dia 24 de Janeiro, quem colocar a cruzinha ao lado do nome de Eduardo Baptista, escolhendo assim um dos nomes constantes do boletim, contará como voto nulo.

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Acha que a situação não pode piorar? Engana-se. Em vez de reconhecer o insólito, o MAI e a Comissão Nacional de Eleições (CNE) esforçaram-se para nos convencer que tudo isto é normal, através de dois argumentos obtusos. Primeiro, alegando que a situação não é inédita, visto que, por três vezes, candidatos comunistas desistiram a favor de uma outra candidatura (1980; 1986; 1996). Só que a situação é mesmo inédita: os candidatos do PCP desistiram das suas candidaturas, enquanto Eduardo Baptista nunca chegou a ser candidato, visto que a documentação que entregou não satisfez os critérios de elegibilidade. Ou seja, o tenente-coronel Eduardo Baptista será o primeiro a constar num boletim de voto sem ter propriamente existido candidatura.

Segundo, o MAI protege-se com o decreto-lei de 1976, no seu artigo 21.º, que regulamenta as eleições presidenciais, para justificar que o sorteio determina a ordem a constar no boletim e que o mesmo se realiza antes da validação das candidaturas pelo Tribunal Constitucional. E, diz-nos ainda a CNE, a impressão teve de ser imediata, porque “não dava para ficar à espera” de eventuais recursos dos candidatos (que poderiam arrastar-se até 11 de Janeiro). Mas este argumento atropela um ponto de elementar bom senso: em vez de ordenar a impressão na segunda-feira (28/12/2020), bastaria ter esperado três dias (31/12/2020) para, com a situação de Eduardo Baptista ultrapassada, imprimir os boletins correctos. Não dava para esperar três dias?

De resto, os argumentos do MAI e da CNE são derrotados pela própria realidade: usariam as instituições do Estado os mesmos argumentos para defender a impressão de um boletim de voto com dezenas de nomes não-candidatos, caso outros cidadãos tivessem feito o mesmo que fez Eduardo Baptista, submetendo candidaturas condenadas à exclusão pelo Tribunal Constitucional? Não é concebível que o fizessem.

Tudo isto é caricato e triste — para nós. O Estado incapaz de planear a correcta impressão dos boletins de voto é, recorde-se, o mesmo que falha no planeamento da escolta das vacinas, mas também o mesmo no qual temos de confiar para a administração das vacinas ou para a protecção social dos mais frágeis. E o que lhe falta em competência, depois, abunda no recurso a desculpas esfarrapadas. Para quem está sempre a pedir mais Estado, talvez esteja aqui uma dica de reflexão: o Estado funciona mal e, não raramente, a coisa chega ao ponto de estar a gozar connosco.

Não conheço Eduardo Baptista de lado nenhum, não sei que ideias tem para o país, nunca dele tinha ouvido falar e não o identificaria se o cruzasse na rua. Mas reconheço-lhe o mérito solitário de nos colocar perante a evidência de graves falhas do Estado na gestão de um simples processo eleitoral. Desde os critérios de elegibilidade (que bloqueiam iniciativas cidadãs) aos procedimentos burocráticos do Tribunal Constitucional (dignos do século XIX), passando pela incapacidade de planeamento do MAI (que imprime boletins incorrectos), pelas leis mal redigidas (que tratam 2021 como se fosse 1976) e pela ausência de liderança política (mais uma trapalhada do ministro Eduardo Cabrita). Afinal, se o sistema é isto, ser-se anti-sistema soa como única opção razoável. E exibi-lo desta forma inequívoca foi mais construtivo do que tudo o que, até ao momento, se ouviu nas entrevistas ou nas acções de campanha dos “verdadeiros” candidatos presidenciais.