Em 2017, na sequência dos incêndios de Pedrógão Grande (em Junho) e das regiões Norte e Centro (em Outubro), somando mais de 100 mortes, Marcelo Rebelo de Sousa enviou um sinal político, que forçou a demissão de Constança Urbano de Sousa, então ministra da Administração Interna. Como à época se resumiu, Marcelo demitiu a ministra, exercendo de forma sonora a sua “magistratura de interferência” e, assim, pondo fim à resistência do Primeiro-Ministro. Em 2020 e neste início de 2021, o mesmo já não sucedeu. Perante a mesma resistência de António Costa em deixar cair Eduardo Cabrita (na Administração Interna) e Francisca Van Dunem (na Justiça), ambos em situações politicamente insustentáveis, Marcelo aparece impotente na imposição de responsabilidades. O que conduz à constatação: o Presidente da República termina o seu primeiro mandato objectivamente enfraquecido.

Afinal, o que mudou entre 2017 e 2021? Não foram propriamente os recados do Presidente da República, que sobre Cabrita e Van Dunem já atirou sentenças similares à que aplicou a Constança Urbano de Sousa — aliás, Marcelo, como quem assume a impotência, sublinhou que o procedimento desta vez não surtiu efeito. Também não foi a popularidade de Marcelo que sofreu oscilações significativas — tal como em 2017, destaca-se a enorme distância da concorrência como o político mais apreciado pela população portuguesa. E, já agora, também não foi a popularidade do Governo que aumentou subitamente e fez perdoar todas as suas falhas — por exemplo, há sondagens que apontam para que metade dos portugueses defenda a demissão de Eduardo Cabrita.

O que mudou foi isto: a direita desmoronou-se, o que faz com que não haja hoje razões para António Costa se sentir pressionado por Marcelo (ou por qualquer outro agente político). Em 2017, o Governo PS aparecia frágil (uma inédita aliança de derrotados), a geringonça tinha uma esperança de vida incerta e desconfiava-se que não concluísse a legislatura. Por seu lado, Marcelo Rebelo de Sousa tinha legitimidade eleitoral e índices de popularidade altíssimos. Para além disso, o PSD tinha a maior bancada parlamentar e uma liderança, com Pedro Passos Coelho, que tornava a direita uma ameaça real ao projecto socialista. Ora, em 2020/21, nada disso existe: o PS venceu eleições legislativas (2019) numa posição dominadora, o PSD está em mínimos históricos (tal como está o CDS), Rui Rio deu prioridade a entendimentos com o PS, a pandemia desaconselha instabilidade política e Marcelo precisa dos eleitores socialistas para ser reeleito sem turbulência. Resumindo: em 2017, o Presidente da República era o centro político do regime; hoje, António Costa usufrui de um contexto ideal para governar sem ceder a ninguém.

Não é propriamente novidade dizer que a força de influência do Presidente da República será tanto maior quanto mais frágil estiver o Governo. Mas a ideia tem uma consequência directa, que raramente se pronuncia: para reforçar a sua influência, ao contrário do que aconteceu entre 2016-2019 com a geringonça, Marcelo necessita de um PSD forte e de uma alternativa política à direita que constitua uma ameaça à governação do PS. Enquanto António Costa golear nas sondagens, apesar de polémicas e incompetências nítidas do seu Governo, o Presidente da República permanecerá um acessório regimental: não definirá nem influenciará nada nas decisões da governação, muito menos terá qualquer poder de interferência.

Isto leva-nos à pergunta final: porque também o beneficiaria, está Marcelo a permitir que esse projecto à direita se desenvolva? De maneira nenhuma. É justo lembrar que erguer do PSD uma alternativa ao PS não é uma tarefa da responsabilidade de Marcelo — ninguém deseja um Presidente dirigista. Mas, por outro lado, há que reconhecer que Marcelo não só não contribui como, efectivamente, obstaculiza a afirmação da direita. Seja porque esvazia a direita partidária em si próprio, assumindo-se como líder informal do centro-direita e cobrando os apoios de PSD/CDS para a sua recandidatura presidencial. Seja porque, nos debates televisivos destas eleições presidenciais, Marcelo argumenta como um candidato socialista — por exemplo, não encontrou pontos de discordância com Marisa Matias ou com João Ferreira, subscrevendo as suas visões ideológicas sobre Saúde ou Economia. Aliás, as discordâncias que lhe ouvimos surgiram no confronto com Tiago Mayan Gonçalves, durante o qual reproduziu o argumentário tradicional da esquerda contra o papel dos privados na Saúde. Dir-me-ão que é um oportunismo eleitoral. Sim, talvez Marcelo acredite ser esta a melhor táctica para uma reeleição tranquila. Mas convém não se esquecer que o vigor do seu provável segundo mandato depende, precisamente, do campo político que está a ostracizar.

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