Recentemente foi publicado um livro de Gorete Figueira, intitulado ‘Parar o Tempo para Ter Tempo”. Este título é de uma enorme transversalidade tendo em conta o ritmo frenético de vida que hoje afeta grande parte das pessoas no mundo ocidental. Por outro lado, o título que Gorete Figueira atribui à sua obra faz-me lembrar um artigo de António Pinto Leite, publicado num dos jornais da nossa praça, já lá vão 28 anos, em que o autor, supostamente cansado de não ter tempo, decide deliberadamente parar o tempo para poder ter tempo! Tanto Gorete Figueira como António Pinto Leite coincidem na mesma pretensão: têm objetivos, discernem os meios e, pelo que parece, conseguem ter sucesso nos seus propósitos. Os dois ousam fazer o que aparentemente não parece estar ao nosso alcance.

A experiência do dia a dia mostra-nos que não conseguimos parar o tempo porque o tempo não se deixa agarrar ou prender. Como não conseguimos parar o tempo e este não nos pode parar a nós, corremos desenfreadamente no tempo que não temos na expectativa de que as coisas aconteçam no tempo que queremos. Este desencontro, muitas vezes fingido porque sabido, priva-nos de degustar o quanto sabe bem viver. Isto porque, damos por nós a colher os frutos fora do tempo, a pressionar o tempo e a impedir que o tempo tenha o tempo de que precisa para que as coisas aconteçam no devido tempo. O sabor está para o saber (esperar) como os frutos estão para as colheitas feitas nas épocas próprias de cada espécie.

Somos desafiados a viver numa dialética difícil, mas saudável e nem sempre de fácil gestão: viver os acontecimentos da vida no tempo e a seu tempo. Isto porque, vivemos no tempo, mas não somos senhores do tempo. Na verdade, o tempo é a nossa casa, aquela que nós não construímos, mas nos constrói a nós. Temos a pretensão de sermos senhores disto tudo, até do tempo, o que é impossível, pois o tempo não pode ser guardado, chutado para o passado ou para o futuro. Dizemos continuamente que não temos tempo, no entanto, estamos a dizer a maior verdade: não temos o que não nos pertence!

Neste desencontro de que falava antes, vivemos numa correria contra o tempo ou ao lado do tempo, mas não a favor do ritmo do tempo. Fazemos uma gigantesca coleção de atos isolados, sem os viver, nem mastigar, sem os ligar, nem os saborear e, mais, sem os deixar amadurecer. Não caímos na conta de que no meio destes atos isolados, o que mais desperdiçamos é a preciosidade do tempo, que não recuperaremos. Por isso, ficamos cheios, mas não contentes, cansados, mas não realizados, de bocas cheias de palavras, mas que nada dizem, de ser gozados pela vida no desejo obcecado de a gozar, de cabeças atafulhadas, mas de corações vazios. Não percebemos porque não nos rendem os 1440 minutos por dia, os 60 minutos por hora, os 60 segundos por minuto. Não perscrutamos porque é que encontramos pessoas sempre ocupadas, mas, não raramente, sem nada fazerem! Não nos interpela o motivo pelo qual, não raramente, encontramos pessoas com uma agenda carregadíssima de serviço à família, à comunidade, à sociedade e paradoxalmente, com quem facilmente se pode contar. A uns custa tanto passar o tempo e a outros, o tempo escapa-lhes como as árvores nos escapam numa viagem de TGV.

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Voltamos ao ponto inicial: é possível parar o tempo? Os autores citados experimentaram e afirmam que sim. Quem consegue o milagre de parar o tempo tem no tempo direitos de cidadania, porque assim decide que seja. Quem ousa parar o tempo para ter tempo consegue um enorme sentido de responsabilidade e ação civil, social e religiosa e é no tempo que estas pessoas o exercem, porque sabem conduzir a vida no tempo e não permitem que sejam conduzidos no frenesim da vida vivida sem tempo.

No meio de tantas definições históricas do tempo, a ideia do tempo como casa do ser, a nossa casa, satisfaz-me. Não sendo nós senhores do tempo, não permitamos que o tempo nos escravize, nos asfixie, nos impeça de fazer o nosso melhor ao ponto de ousar perceber a razão pela qual entramos no tempo e neste tempo que nos é dado viver, com tudo o que herdamos para a história que fazemos. Ou recordando Dalai Lama, quando lhe perguntaram: “o que é que mais o espanta neste mundo de seres vivos”? ele responde: “o homem”; “em que sentido”? “Porque o homem sacrifica a sua saúde para ganhar dinheiro. Depois sacrifica o dinheiro para recuperar a saúde.  Depois, olha para o futuro com tal ansiedade, que não vive o presente. Como resultado, nem vive o presente nem o futuro. Vive como se nunca morresse e, entretanto, morre sem nunca ter vivido”.

Voltando ao tema dos nossos autores, estes parecem viver apaixonadamente na casa do tempo, sem que este os esgote ou os domine. Eles parecem ter sempre tempo na medida em que o agarram sem nunca o possuírem, o gerem sem nunca o verem, esperam o tempo e dele se despedem sem nunca o terem encontrado, sabem que o tempo passou por onde eles passam, sem nunca o deixarem no passado. Assim, seria oportuno recordar Henri Bergson para encontrarmos eco face às intuições mais profundas dos autores: a única realidade capaz de diluir o tempo sem o negar como casa da nossa vida, é a vivência. Na verdade, o que nos falta, é vivermos o que de bom fazemos a fim de melhor fazer o que de bom vivemos.

Sem vivência, o tempo não passa, não pára, não anda. É pura e simplesmente uma seca. Sem vivência o tempo é a casa da seca. A seca nega o tempo e coisifica-nos!  Assim é nos jogos, na cultura, no culto, nas relações, no trabalho, até na gestão do próprio silêncio e solidão. A solidão é a pior resposta a quem não está de bem com o tempo. A hiperatividade é a maior geradora de frustrações na medida em que se baseia no pressuposto de que somos imprescindíveis e valemos mais pelo que fazemos do que pelo que somos. Sem conexão e sintonia entre o exterior histórico e o interior vivencial do ser humano, tudo se pode tornar seco, porque não podemos domesticar o tempo que nos escapa a não ser que o vivamos a partir de um saber que dá sabor à nossa vida.

O Natal que se aproxima permite-nos o que a muitos de nós parece impensável ao longo o ano: assistirmos ao milagre da paragem do tempo para o viver em família e em comunidade, sem a pressão do tempo. Sim, a experiência de viver o Natal passa por entrar na casa do tempo e deixar que ele pare, para viver sem pressa, o que o Natal tem para nos dizer e oferecer. Por isso, no Natal é-nos devolvida a possibilidade de experimentar um bocadinho de eternidade, onde não há tempo, porque Aquele que acolhemos vem de ‘lá’, entra no tempo e aponta-nos o caminho para viver ‘cá’ com ‘lá’ nos horizontes.  Noutros termos, no coração da quadra natalícia, parece que a eternidade decide rasgar o tempo, parar o tempo e habitar na história, para que cada um de nós, a viver na casa do tempo, abrace a eternidade e a tenha como referência de sentido e meta. No coração da quadra natalícia ou sempre que damos espaço a que a eternidade se afirme no nosso tempo, podemos aprender a absolutizar o que é absoluto e a relativizar o que é relativo. Nessas vivências e momentos, podemos ser felizes, mesmo que não saibamos porquê!

Não sei se podemos ter a pretensão de fazer de cada dia do ano, dia de Natal. Ao longo do ano celebram-se festas maiores porque não podemos viver todos os dias em festa. Mas podemos seguramente aprender das grandes celebrações e captar sinais do absoluto, do tempo que pára sem nos parar, das vivências que nos enchem sem nos esgotar, da certeza de que, contas feitas, gerimos o tempo de que não somos senhores nem escravos.

Deus na sua infinita criatividade, poderia ter rasgado o tempo e nele habitado de outro modo. Porém, decidiu fazê-lo através da fragilidade de uma criança, a qual nasceu, cresceu, é provável que nunca tenha ‘corrido nem parado’, simplesmente viveu e não precisou de uma vida longa para nos ensinar a viver, a fazer e a ver como pode ser.

Pároco do Lumiar-Lisboa