Quando uma agência governamental tem de decidir se autoriza a comercialização de um determinado produto farmacêutico, pode enganar-se, grosso modo, de duas formas: (1) autorizar a comercialização do medicamento quando não o devia fazer (por exemplo, porque os efeitos secundários são mortais) ou (2) não autorizar quando, na verdade, os benefícios são maiores do que as desvantagens (por exemplo, porque o medicamento é muito eficaz). Do ponto de vista médico, um erro é potencialmente tão grave como o outro. O erro de tipo 1 pode matar quem faz o tratamento indevidamente autorizado, tal como o erro de tipo 2 pode evitar que alguém se salve ao impedir esse alguém de fazer o tratamento adequado.
Há já bastante literatura científica a argumentar que as agências regulatórias são demasiado conservadoras, ou seja, que se preocupam demasiado em minimizar o primeiro erro, exacerbando a probabilidade do segundo erro. Provavelmente, isto acontece porque o primeiro tipo de erro causa muitos mais danos reputacionais. Uma notícia com algumas mortes por causa de efeitos secundários de um medicamento recentemente autorizado é muito mais explosiva do que notícias com mortes por doenças que desde sempre foram mortais (e que poderiam ser evitadas se um determinado tratamento estivesse disponível).
Este tipo de queixas é antigo. Henry Miller — não se excitem que não estou a falar do autor de Trópico de Capricórnio —, um dos responsáveis pela aprovação do uso de insulina humana (na verdade, a insulina é produzida por umas bactérias depois de lhes modificarem o ADN; peço desculpa, mas não sei explicar melhor), conta como eram os processos no início nos anos 80 do século passado:
No início dos anos 80, quando liderava a equipa da FDA [Food and Drug Administration] que estava a rever os dados da aplicação de uma nova insulina humana recombinante, estávamos prontos a autorizar o seu uso apenas 4 meses depois da submissão do pedido (na altura, o tempo médio eram 30 meses). Apesar de concordar que os estudos apresentados forneciam provas mais do que convincentes da sua segurança e utilidade, a verdade é que foram encontrados todos os motivos burocráticos para atrasar o processo de aprovação. “Se alguma coisa correr mal, imagina como vai parecer mal que tenhamos aprovado a droga tão depressa”, argumentava ele.
Henry Miller ganhou a batalha e conseguiu que a nova insulina fosse aprovada em 5 meses. Desde a invenção da insulina animal em 1922, esta nova insulina humana sintética foi a grande inovação no tratamento da diabetes, em especial da diabetes de tipo 1. Recordo, alguém com diabetes de tipo 1 é totalmente dependente de insulina. Não é resultado de má alimentação ou de falta de exercício. É uma doença auto-imune que faz com o que pâncreas deixe de cumprir uma das suas funções: produzir insulina. Para suprir esta deficiência, a pessoa, sempre que come, tem de se injectar com a dose correcta de insulina. Insulina a menos fará com que os níveis de açúcar no sangue aumentem em demasia (provocando todo o tipo de efeitos secundários perversos, desde demência a cegueira). Insulina a mais pode pôr a diabética em coma ou mesmo matá-la. Para calcular a dose certa, a doente tem de ter em conta o seu nível de glicemia (geralmente, mede com uma gota de sangue) e contar os gramas de hidratos de carbono que vai ingerir. Todos os dias, aliás, várias vezes ao dia, uma diabética de tipo 1 toma decisões relativamente à dosagem do seu medicamente que podem ser letais. Não conheço nenhuma outra doença assim.
Uma das coisas que me surpreendeu quando tive de passar a lidar com esta doença, no ano passado, foi o quão pouco se tinha evoluído em quase 100 anos. Desde os anos 80, a principal inovação foi a bomba de insulina que surgiu há cerca de 20 anos e que permite substituir as várias injecções diárias de insulina por um cateter que apenas tem de ser substituído a cada 3 ou 4 dias. O fluxo contínuo de insulina permite aos doentes um muito melhor ajustamento das doses às suas necessidades diárias.
A grande inovação mais recente são os Monitores Contínuos de Glicose (MCG). Com um aparelho destes, espetado em alguma parte do corpo, é possível monitorizar em tempo real os níveis de glicemia no sangue. Com muito mais informação, passa a ser possível à doente ir alterando as suas doses de insulina em tempo real, permitindo assim um muito melhor controlo da diabetes.
A ideia de pôr as bombas de insulina a interagir directamente com os MGC e a automaticamente injectarem umas doses extra de insulina ou, se os valores estiverem demasiado baixos, reduzir as quantidades de insulina que estão a ser administradas parece um pequeno passo, que qualquer informático, com uma boa equipa médica por trás, poderia programar.
Parecia simples, mas, na verdade, as autoridades responsáveis pela introdução de novos medicamentos sempre rejeitaram experiências neste sentido. Foi assim que, em 2014, nasceu o movimento “we are not waiting”: não esperamos. Diabéticos com competências informáticas fizeram hacking das suas bombas (ou das das suas crianças) e puseram-nas a comunicar com os MGC e, por via de algoritmos matemáticos, a tomar decisões sozinhas. Ou seja, fizeram das bombas de insulina pâncreas artificiais. Os resultados foram fantásticos e quem recorre a estes sistemas, disponíveis em open source, diz que obtém resultados incríveis. O preço a pagar é que, ao fazer isto, fica fora dos sistemas nacionais de saúde dado que não há autorização médica para o fazer. Mais grave, muitos médicos ficam impedidos de dar aconselhamento aos doentes. E, naturalmente, as bombas de insulina usadas ficam fora das garantias. Por estes motivos, ainda não me aventurei em tentar instalar um openAPS — Open Artificial Pancreas System — na minha filha e, na verdade, é muito improvável que o venha a fazer, dado que, para já, temos conseguido um controlo bastante bom da diabetes.
A responsabilidade é enorme e, apesar de todas as instruções estarem disponíveis na internet, a verdade é que ninguém nos dá qualquer apoio na instalação e programação da máquina. A responsabilidade é demasiado grande e, por isso, cada um está por sua conta e risco. Mas todos beneficiamos com estes aventureiros. Apertada pela pressão da opinião pública e médica, finalmente, a FDA permitiu que se realizassem experiências controladas, com vista à criação destes algoritmos que permitirão, dentro de 2 a 5 anos, transformar as bombas de insulina em autênticos pâncreas artificiais. Afinal, mesmo para a imagem da FDA, é um pouco absurdo que os diabéticos que melhor controlam a doença sejam os que deliberadamente e sem apoio médico infringem as suas normas de segurança.
Para quem, como eu, não tem coragem para dar o passo de saltar por cima das autoridades médicas, mesmo assim estas comunidades são um apoio fenomenal. O último de que beneficio é o projecto NightScout, que me permite controlar, em tempo real e onde quer que a minha filha esteja, os seus níveis de glicemia.
Qualquer pessoa que tenha dinheiro para comprar um MCG e algum material extra pode fazê-lo, desde que consiga vencer o medo de ler instruções aparentemente difíceis, que estão disponíveis na internet. No meu caso, a minha filha tem um sensor de glicemia enlite que mede de 5 em 5 minutos os seus níveis de açúcar no sangue. Tive de instalar uma aplicação no meu telemóvel (para sensores enlite tem de ser um android, de preferência versão 6, mas para outros sensores pode precisar de um iPhone ou até de um smartwatch). Preciso ainda de um cabo OTG (pelo que é necessário garantir que o telemóvel tem esta funcionalidade; procurando com cuidado, por menos de 200€ encontra-se um telemóvel adequado). O telemóvel recebe os dados e tem de estar ligado à internet, para carregar os dados para uma base que temos de subscrever. Depois, temos também de subscrever um website (pode ser junto da Microsoft) que irá ler essa base de dados e pô-los numa página web. Posso, assim, em tempo real, controlar os valores da minha filha.
Não o faço durante o dia, pois, não só não quero que ela se desresponsabilize, por saber que o pai a está a monitorizar, como também quero que se sinta livre da presença paternal 24 horas por dia. Mas, claro, quem tem um filho de 5 anos, ou um filho mais estouvado, pode pensar de forma diferente. Uso-o essencialmente durante a noite. Tenho alguns alarmes programados e sempre que os valores ultrapassam certas barreiras, o alarme do meu telemóvel dispara. Isto permite-me ter o que poucos pais na minha situação têm: umas noites descansadas, às vezes. Noutras noites, os alarmes disparam e permitem-me actuar antes que ocorra qualquer situação mais grave.
Um destes dias, num grupo privado do facebook, um americano desabafava:
Nunca poderei agradecer devidamente ao projecto NightScout. O meu filho levou uma dose mortal de insulina na escola. Se não fosse o NS não teria forma de o saber e não teria voado para a escola, para o encontrar já em hipoglicemia (valores de 60) e com uma quantidade de insulina activa para cair mais 300. Criadores deste projecto… salvastes a vida ao meu filho!
Há uns meses, foi muito noticiado um novo aparelho que permitia medir continuamente a glicemia no sangue sem ter de se picar os dedos (e que também se pode ligar ao Nightscout). Chamavam-lhe o fim da picada. As notícias estavam erradas quando diziam que era o primeiro sistema que o fazia. E estavam muito erradas ao darem a entender que era essencialmente uma questão de conforto. Também o é, claro, se a leitora experimentar picar os dedos 7 a 10 vezes por dia, rapidamente verá que os seus dedos ficam uma desgraça. Mas é muito mais do que isso. A monitorização contínua permite saber muito melhor se se está a controlar a doença ou não. Duas pessoas podem ter os mesmos níveis médios de glicemia, mas apresentarem grandes diferenças nos altos e baixos, ou seja nas hiper e nas hipoglicemias. E esse é um controlo que apenas com um MCG se consegue fazer, especialmente de noite, e é um controlo muito importante. É que, para a mesma média, quanto mais irregulares forem os níveis de açúcar no sangue maiores serão as probabilidades de se vir a ter problemas cardíacos.
Foi rejeitada uma petição na Assembleia da República para comparticipar estes produtos, que custam, no mínimo 120€ por mês, além de algum investimento inicial. Há uns dias, uma senhora a disse-me que o seu filho precisava deste sistema mas que, infelizmente, ia ter de desistir dele, porque não tinha dinheiro. É revoltante. Bem sei que é utópico pensar que quem não tem dinheiro algum dia terá o mesmo acesso à saúde que quem dele dispõe e que é demagogia falar no dinheiro que se gasta a salvar bancos. Mas, caramba, há alturas em apetece dizer que isto é tudo uma merda.