Há uns anos, numa assembleia de freguesia de que fazia parte, estava em votação um regulamento que queria tornar aquela zona de Lisboa num micro estado securitário. Pretendia que fiscais da freguesia – além dos normais agentes da segurança pública – vigiassem os fregueses. Multas pesadas – a acrescer às previstas no código civil ou penal ou rodoviário – seriam aplicadas a quem estacionasse em segunda fila, arrancasse flores dos jardins ou tivesse qualquer comportamento julgado impróprio pela freguesia.
Evidentemente recusei-me a votar favoravelmente a aberração, e discordei dela, mesmo sendo proposta pelo executivo de freguesia em cuja lista tinha sido eleita. (O mesmo fizeram, refira-se, a maioria dos eleitos da dita lista.) Não por me imaginar indo com os meus filhos pela rua, um deles apanhar uma flor dos canteiros do passeio para amorosamente oferecer à sua mãe, e, de imediato, um fiscal, até então camuflado de vidrão ou de arbusto de hidrângeas, saltar para a nossa frente para nos deter e terminar a passar a este grupo familiar de meliantes uma multa de setenta e cinco euros (ou lá o que era). Mas porque considerei o regulamento um abuso de poder daquele órgão municipal.
Este abuso tinha dimensão de uma freguesia, mas podemos orgulhar-nos de tolerarmos com grande bonomia aberrações semelhantes nos níveis superiores. Subamos para as câmaras municipais.
Temos o caso de um homem a quem a presidente de câmara de Abrantes, Maria do Céu Albuquerque, agora secretária de estado do Desenvolvimento Regional, destruiu a vida tentando apropriar-se de um terreno que todos os tribunais consideraram ter propriedade comprovada e inequívoca. Recorrendo de derrotas nos tribunais além de toda a ética, tentando provar que o proprietário era louco, agindo com (judicialmente) reconhecida má fé. Retaliando com licenças de utilização que não foram concedidas aos negócios do cidadão insubmisso. Até que o teimoso que não prescindiu da sua propriedade ficou reduzido a viver de subsídios e biscates.
Em boa verdade não são só as câmaras municipais. Qualquer nível de administração pública recorre das ações que perde até ao mais alto tribunal que tiver disponível, a ver se esgota o tempo e o dinheiro para o processo e para os advogados da outra parte.
E depois há a Autoridade Tributária.
A AT é um organismo que não tem limites na hora de espremer impostos dos cidadãos. Não espanta: os agentes da AT recebem cinco por cento das cobranças coercivas que fazem. Donde, inventam com largueza na hora magicarem dívidas inexistentes que apresentam para cobrança aos infelizes contribuintes a quem calhou o azar de lhes chamar a atenção. Fazem-no contando com a falta de informação da esmagadora maioria da população (conheço casos de informações erradas dadas nas repartições de finanças que prejudicaram pessoas de boa fé em milhares de euros). Tirando fiscalistas, quem é que percebe das regras e leis fiscais, de resto sempre a mudar, a ver se dificultam a vida das pessoas e cobram mais uns tostões? E contam também com a falta de capacidade da maioria dos portugueses para pagarem a advogados que contestem as invenções de dívidas da AT. A maioria dos portugueses está à mercê destes agentes desgovernados. Quando os contribuintes têm capacidade de litigância, a AT perde 60% das disputas.
Por isso não espanta que algumas alminhas tenham suposto ser uma ideia muito catita irem para as autoestradas e arrebatarem os carros dos pobres com dívidas ao fisco (bom, diz o fisco, pelo que sabe-se lá). Há respeitáveis pais e mães de família julgando inteiramente adequado que alguém que deve (ou não) dezenas ou centenas de euros ao Estado é bem feito que fique a pé no meio da autoestrada e privado do seu carro, que bem provavelmente lhe é um bem essencial na vida, inclusive para prover ao seu sustento e da sua família.
Ou espatifarem aos noivos o dia do seu casamento. Percebo que burocratas das finanças não alcancem dos assuntos do coração, mas os casamentos são momentos de grande expetativa de serem um dia agradável e feliz, as famílias investem consideravelmente, não é de estado de bem dar cabo disto a ver se cobra mais quinhentos euros em IVA dos serviços comprados. A brilhante ação foi cancelada, mas só porque há eleições em outubro. Usemos a memória: já em 2017 tinham feito o mesmo.
A culpa não é dos inspetores da AT, que afinal não são pessoas mais maliciosas do que o cidadão médio. Muitos deles são verdadeiramente solícitos na hora de ajudarem a resolver os imbróglios que outros inventam. A culpa é dos governos e dos legisladores, sedentos de receitas, que incentivam estes abusos – já reparou que os nossos ministros das finanças têm o sonho, qual Tio Patinhas, de nadarem numa casa forte de dinheiro cobrado aos contribuintes, certo? Mais: legislam e regulamentam para que os abusos sejam possíveis. E desejam que ocorram, e que se espremam mais receitas, desde que, se apanhados pela comunicação social, possam colocar uma fácies surpreendida e asseverarem-nos, com tom de voz magoado pela nossa tão injusta suspeita, que jamais em tempo algum tal julgaram possível.
Deixo uma ideia. Sempre que o Estado perder uma ação em que reclamava dívidas afinal inexistentes, que se obrigue de forma automática a uma indemnização aos contribuintes no valor dos custos que tiveram: advogados, custas com tribunais ou arbitragens, tempo de trabalho dos envolvidos. Valor que se diminuiria do tal fundo de 5% das cobranças coercivas.
Ou isto ou, quando a ministra Graça Fonseca localizar com mais exatidão as obras desaparecidas da coleção estatal, oferece-las aos lesados. Por um Vieira da Silva já valeria a pena ser perseguida pela AT. Ou pela Câmara de Abrantes.