Em 2015, e de forma inédita, o Parlamento uniu vontades e assemelhou objetivos, constituindo e aprovando uma solução governativa diferente da que tinha tido mais votos.

Apesar dessa solução ter tido origem em reuniões bilaterais e ter por base acordos separados entre o PS e o Bloco, o PS e o PCP e o PS e os Verdes, a verdade é que este início foi determinante para o equilibrismo de posições, conquistado nos gabinetes do Parlamento e votado no Plenário, quase até ao final da legislatura.

Para isso foi fundamental um secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares forte e fluente no lingo da esquerda, um residente da casa da Democracia em regime de renda controladora.

E assim, no primeiro Governo minoritário de António Costa, o Parlamento foi enaltecido como o centro da atividade política.

Ao final de 40 anos, dizia-se e repetia-se, o Parlamentarismo português tinha atingido a sua maturidade. E viu-se que isso era bom (e seria, se fosse autêntico).

Mas os acordos foram-se esgotando, veio o fim da legislatura e depois as eleições. Desta vez já não houve partidos de apoio, reuniões bilaterais ou “posições conjuntas”.

E desde o começo do segundo Governo minoritário de António Costa, o Parlamento foi perdendo relevância. O Governo passou a ser o centro, numa versão moderna e modesta de “L’État c’est moi”.

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Fintando esquerda e direita, o Governo ignorou o Parlamento, onde nada tem a ganhar, mas onde ainda pode perder. Cumpre agenda, desinteressadamente, até arrogantemente. O Parlamento deixou-se descentrar e o governo viu que isso era bom.

Depois veio a pandemia, inesperada e perigosa, e bem capaz de desocultar as muitas fragilidades do país. Como, para o Governo, mais grave do que as fragilidades é a sua desocultação, havia que garantir que isso não acontecia. Até porque, nisso concordamos, não era o momento para a contraprova da vulnerabilidade.

Então, a bem da agilidade, e da urgência, e da emergência, e do consenso nacional e de qualquer outro argumento facilmente explicável e bondosamente acolhido, o Parlamento foi descentrado ao ponto de se tornar periférico e quase formalista na sua função.

Todas as informações e a maior parte das decisões passaram para outros espaços, que não o Parlamento.

Houve reuniões de epidemiologistas em que vários poderes eleitos e não eleitos do país assistiram, sem debater, ao que os cientistas tinham ou não tinham para dizer sobre o que a ciência podia ou não podia acrescentar. Presidente da República, presidente da Assembleia da República, primeiro ministro e membros do governo, representantes dos partidos políticos, parceiros sociais, conselheiros de Estado, provedora da Justiça, …, todos conduzidos pela assética e hábil mão de António Costa a uma antecipada solidariedade com o Governo.

A estas, seguiam-se reuniões bilaterais, com cada um dos partidos com assento parlamentar, à porta fechada, para comunicação de decisões já tomadas, que assumiriam depois a forma de Decreto-lei, por fim enviados ao Parlamento para ratificação final.

“A democracia não foi suspensa”, ouvimos até à exaustão. E claro que não o foi, porque mesmo o “Estado de Emergência” faz parte da democracia nos termos em que a Constituição o determina. Não foi a democracia que foi suspensa, foi o Governo que a geriu. E viu que isso era bom.

Depois veio o fim do “Estado de Emergência”, anunciado em primeira mão à comunicação social, por António Costa, entregando aos jornalistas um documento detalhado para que pudessem noticiar as medidas e as implicações. À mesma hora, improvisadamente, no Parlamento, o ministro da Economia enunciava um sumário simples, suficiente para os deputados, que depois leriam no jornal ou receberiam através de whatsapp de amigos, o documento dos jornalistas.

E veio o tempo de discutir a recuperação económica.

No Parlamento, o “Plano de Estabilidade e Reformas” foi vagamente discutido por ser objetivamente vago.

Soubemos, entretanto, que, fora do Parlamento, haveria reuniões bilaterais com os partidos, à porta fechada, lideradas por uma personalidade de reputado mérito que não integra o Governo.

E é assim, tem sido assim, porque o Governo viu que isto é bom. Bom para a sua longevidade, bom para a sua capacidade de executar sem ter que acomodar as “ingerências” da oposição, bom para desenvolver a sua narrativa sem o escrutínio maçador do Parlamento.

E pode até ser bom para outros partidos, por razões táticas.

Mas, no final do dia, esvaziar o Parlamento é coartar a representação da maioria dos eleitores, falhando o compromisso de lhes dar voz audível, e, ironicamente, é dar espaço ao populismo que cresce por se afirmar contra o sistema.

Ninguém vê que nada disto é bom?