Na quinta-feira, enquanto conduzia, ouvi pela primeira vez em décadas o “Fórum TSF”. Naturalmente, dado que o PS terminara de estabelecer uma rede de poder sem precedentes em democracia, o tema em “debate” era a “A pandemia e os desafios da mobilidade sustentável”. Podia ter sido “A pandemia e as inovações na tarologia contemporânea” ou “A pandemia e a aposta nos toalhetes de bebé”, mas era a “mobilidade sustentável”. Curiosamente, e decerto ao contrário do que pretendia a rádio em questão, o programa demonstrou com notável rigor o estado a que chegamos, e do qual não há grandes hipóteses de sairmos.
Apanhei o “Fórum” a tempo de ouvir um professor universitário agradecer à Covid a “oportunidade” de “repensarmos” os nossos hábitos (como a personagem de Belém sugeriu que se repensasse o Natal). O homem estava entusiasmadíssimo com o “novo normal” (palavras dele), leia-se a possibilidade de se trabalhar em casa, e largar o automóvel e o avião, e usar transportes públicos. E usar bicicletas. E trotinetas. E carros de boi, talvez. O homem queria deixar claro que não se pode voltar atrás. O homem queria leis. O homem queria decretar ali mesmo a inauguração de uma realidade sem retorno. O homem carecia de vigilância médica.
Depois do professor universitário, o “Fórum” abriu-se a uma procissão de fanáticos similares. Alguns exigiam abolir os carros não eléctricos. Um, em particular, exigia a proibição dos carros em geral, eléctricos incluídos. Outro exigia um tabuleiro pedonal na ponte sobre o Tejo (com contas feitas: 30 milhões de euros, salvo o erro). Um arquitecto lamentava a maior procura de cursos de engenharia, atendendo a que, cito, “a arquitectura é vida”. E uns tantos apresentaram as suas “start ups”, em busca de subsídios a fundo inevitavelmente perdido. Fatal e finalmente, surgiram vereadores a publicitar as fantásticas “respostas” da “autarquia” no “âmbito” da “mobilidade suave”.
Malucos. Oportunistas. Demagogos. Crianças crescidas. Engenheiros sociais. Zombies anestesiados com convicções grotescas. Candidatos a tiranos. Tipos porreiros que combinam almoçaradas e em suma procuram safar-se na vida. Escutei todos com uma impressão entre o fascínio e a tristeza. E senti, não me perguntem porquê, que já não corremos risco de entrar em ditadura: a ditadura é isto. Quando, para uma vasta maioria da população, a opressão se parece com um modo de vida e não com o inimigo, as ilusões de liberdade não resistem. Havia uma neblina que fazia ainda mais melancólica a paisagem da A1. Os participantes do programa reclamavam ou aplaudiam “investimentos” públicos. “Medidas”. Planos. Imposições. Ultrapassei um automóvel cujo único ocupante envergava máscara, suspeito que com orgulho. Hora e meia de “Fórum” resumiu o país, um lugar periférico onde desnorteados agitam delírios inconsequentes. Onde pantomineiros tentam enganar pasmados iguais a eles. Os cartazes na berma da estrada imploravam: “Anuncie aqui”. É muito fácil subjugar uma sociedade assim.
Sob a limitada figura do dr. Costa, um indivíduo semi-alfabetizado, o PS subjugou Portugal com uma leveza espantosa para quem não conhece os portugueses. Após devorar a procuradoria-geral da República, a presidência da República, o Banco de Portugal, as câmaras, as direcções-gerais, o parlamento, a oposição (desculpem), a quase totalidade dos “media”, a banca, as associações “empresariais”, os contratos estatais, os dinheiros da “Europa”, os salários, o direito de propriedade, a saúde, a privacidade e tudo o que se mexe, não foi a recente tomada do Tribunal de Contas que decidiu o final da frágil democracia em que vivíamos: foi a indiferença que, à semelhança das ocupações anteriores, a tomada do Tribunal de Contas mereceu. A ditadura é isto. Como o fim do mundo de Eliot, por vezes estas coisas não acabam com estrondo e sim em lamúria. O fim do regime nem a lamúria suscitou. Os portugueses assistiram ao processo – crescentemente descarado – com um peculiar sentido de inevitabilidade. E, imagino, de conforto.
O PS manda em tudo e as sondagens dão-no próximo da maioria absoluta. É verdade que as sondagens valem pouco num sistema praticamente de partido único. São, apesar disso, um sinal de que os eleitores não fugiram em debandada para os raros críticos organizados (a Iniciativa Liberal e o Chega, digo eu com excessivo optimismo) ou para a abstenção (que é a do costume). Se amanhã houvesse eleições, o PS ganharia. Se houvesse a possibilidade de o PS não ganhar, amanhã não haveria eleições. A ditadura é isto. Estamos no ponto em que a Constituição, outrora sagrada, se transformou no bloco de notas do dr. Costa. Apetites de prepotência o PS sempre teve. Nunca teve tamanho à-vontade para consumá-los. Hoje, o PS faz o que lhe apetece com extraordinário descaramento, e sem uma brisa de contestação.
Existe alternativa? Com este povo manso e infantilizado, não. Existe esperança? Existe uma possibilidade de saída. Sob o criminoso pandemónio erguido a pretexto da Covid, a rede de compadrio e puro saque montada pelo PS e respectivos aliados tem custos, que a histeria sanitária não justifica e que, um dia, nem os abonos europeus disfarçarão. Ou seja, é inevitável que esta mistura altamente redundante de socialismo, despotismo e ladroagem despeje Portugal na miséria. Ou, na melhor das hipóteses, numa bancarrota que causará saudades das precedentes. Nesse momento, é plausível, embora não obrigatório, que o PS abandone o barco – porque quer e não porque o forçaram. A ditadura é isto. Não sabiam? Sabiam. Sabem. E no fundo gostam.