Não é possível pensar na reforma e modernização do Estado sem pensar em regionalização e descentralização. Quais são as funções do Estado e quais devem ser exercidas a nível nacional, regional e local?
Em 25 de Abril de 1974, Portugal tinha um Estado típico de um país do século XIX. Não tinha funções de relevo nas áreas da educação e da saúde, o investimento público era quase inexistente: a despesa e a dívida públicas correspondiam a cerca de 20% do PIB.
O Estado cresceu com o regime democrático e, nos anos 90, a despesa pública estava já em ‘patamares europeus’, com o seu peso no PIB a ultrapassar 40%. Em 2010, o peso da despesa no PIB foi superior a 50%. A dificuldade em controlar o crescimento da despesa pública resultou, em 2011, no terceiro pedido de resgate a instituições internacionais para evitar a bancarrota.
A responsabilidade do descontrolo das finanças públicas foi essencialmente da Administração Central. De facto, apesar da importância das autarquias na constituição da nossa democracia, foram-lhes atribuídas competências muito limitadas e uma pequena parte da despesa pública total: cerca de 12% em 2018 – na UE, apenas a Roménia, a Bulgária, Grécia, o Luxemburgo, o Reino Unido e a Irlanda têm valores semelhantes ou inferiores. Em 2017, a dívida das autarquias representava 2% da dívida pública total.
Assim, o crescimento do Estado fez-se essencialmente no âmbito da Administração Central, tornando Portugal um dos países mais centralizados da UE e da OCDE. Na verdade, nas primeiras décadas da democracia, o Estado Central cumpriu bem o seu papel. À época, a centralização das decisões fazia sentido. Essa centralização revelou-se eficaz na construção de uma série urgente de infra-estruturas. A criação de uma rede escolar de acesso universal, nos seus diferentes níveis; a criação do Sistema Nacional de Saúde, que garantisse o acesso universal a cuidados de saúde; a construção de infraestruturas básicas nacionais, como foi o caso da rede de autoestradas. Adicionalmente, até aos anos 90, o crescimento do Estado Central coincidiu com um forte crescimento da economia e com a convergência para os níveis de rendimento dos países mais ricos da UE. Este contexto favoreceu certamente a ideia da benignidade de um estado altamente centralizado.
As crises e a estagnação económica que surgiram na viragem do ano 2000 colocaram a reforma e a modernização do Estado no centro da discussão política. Muitos, incluindo o autor deste texto, têm associado a longa estagnação da economia portuguesa à existência de um Estado grande e fraco, capturado por interesses privados, que prevalecem muitas vezes sobre o interesse público. No entanto, poucos foram os que associaram a reforma do Estado à necessidade de descentralização e de regionalização – talvez porque em 1998 esta tinha recusada em referendo pela população. Mesmo os mais críticos do papel do Estado, como alguns grupos liberais, parecem preferir o poder absoluto do Estado Central a um poder descentralizado e mais próximo dos cidadãos.
A reformulação do papel do Estado na economia e na sociedade portuguesa deu-se com um atraso de 50 anos: foi preciso esperar pela década de 70 para adoptarmos as políticas que os Estados Unidos e os países mais desenvolvidos da Europa iniciaram nos anos 30 e que se aprofundaram no pós-Segunda Guerra Mundial. Ainda hoje, com a baixa escolaridade da população activa, pagamos bem caro esse atraso.
Será que vamos cair no mesmo erro e no século XXI vamos persistir num modelo de Estado do século XX?
Nos anos 90, a globalização e as mudanças tecnológicas aceleraram, alterando profundamente as condições de competitividade dos territórios. As regiões têm estruturas produtivas muito diferentes. O Algarve, com uma grande especialização no turismo; a região de Lisboa, onde as actividades administrativas e o comércio têm um grande peso; ou o Ave, onde mais de 60% do valor-acrescentado é gerado pela indústria. Estas diferenças implicam factores de competitividade muito diversos e políticas específicas que respondam às novas condições do comércio internacional e da tecnologia. Um Estado muito centralizado como o português terá muita dificuldade em identificar e em responder em tempo útil às necessidades dos diferentes territórios, em termos da qualificação da mão-de-obra, de infraestruturas ou de estratégias para a atracção de investimento directo estrangeiro.
Pode argumentar-se que num país com uma dimensão geográfica relativamente reduzida e com boas infraestruturas de transporte e comunicação uma gestão eficiente e eficaz poderia ser alcançada por um Estado muito centralizado. Porém, a representação política dos diferentes territórios no Estado Central tem vindo a diminuir. Houve uma redução de deputados em vários distritos do interior. Na própria composição dos Governos, os membros provenientes das grandes áreas metropolitanas têm vindo a ganhar preponderância. Numa palavra, o Estado Central tem cavado um distanciamentoem relação às necessidades e problemas dos territórios.
Por outro lado, a ineficiência do Estado Central, mesmo nas suas funções básicas, é conhecida de todos. A título de exemplo, a decisão de construção do aeroporto de Lisboa leva décadas; a incapacidade de construir um ligação ferroviária realmente rápida entre Lisboa e Porto; os cidadãos portugueses têm dificuldades em obter o seu cartão de identificação. O Estado Central deveria agradecer que lhe alijassem responsabilidades, para poder concentrar-se naquilo que não pode ser descentralizado ou regionalizado.
Não há modelo de organização do Estado que possa ser copiado. A organização do Estado tem de ter em conta as condições específicas do país. Todavia, em Portugal temos dois bons exemplos de como a regionalização pode contribuir para o desenvolvimento das regiões: imaginem o que seriam ainda hoje as regiões dos Açores e da Madeira (hoje mais ricas que as regiões Norte e Centro do Continente) sem autonomia regional, dependentes do Governo da República para definirem uma estratégia de desenvolvimento e resolverem os seus problemas.
Embora, pelas razões acima referidas, considere a regionalização uma condição necessária para o desenvolvimento do país, não tenho grandes esperanças que um processo de regionalização possa correr bem. Ele terá necessariamente de ser conduzido pelo Estado Central e as últimas décadas mostraram a sua incapacidade em se reformar. Sem essa capacidade, nunca poderemos alcançar um processo de regionalização que resulte numa economia mais competitiva, que aproveite o potencial económico das diferentes regiões, e em maior coesão social.
Se durante grande parte do século XX subsistiu um Estado do século XIX, é bem possível que no século XXI persista um Estado feito à medida do século XX, grande e fraco, incapaz de aproveitar os ventos de mudança do mundo.