Inícios de 2002, numa sala de espera de um consultório ao pé do Marquês de Pombal. Havia uma revista Visão e pus-me a lê-la enquanto esperava pelo (atrasado) médico. Estávamos em campanha eleitoral para as legislativas, depois de Guterres ter fugido do pântano que criou. Na Visão havia duas reportagens. Uma sobre a campanha de Durão Barroso, com o tom trocista que se esperava (o cherne, recordam-se?) . A outra, sobre a campanha de Ferro Rodrigues (alguém tão capaz de criar empatia com o eleitorado como o glaciar médio), tinha um tom diferente. Os cristãos mais conservadores não falam de Nossa Senhora como o jornalista falava de Ferro Rodrigues, ser radioso que ostentava todas as qualidades possíveis num ser humano. Quando fui chamada para a consulta, ia com a certeza que o jornalista (nome conhecido, de resto) tinha acabado de escrever o texto com lágrimas de comoção no canto do olho por ter versado sobre objeto tão sublime e ter participado na nobre missão de o dar a conhecer ao mundo.
2004. O senhor ‘há vida para além do défice’ (também por vezes conhecido como Jorge Sampaio) finalmente escorraçou o usurpador Pedro Santana Lopes da chefia do governo. Tão marcante evento – a dissolução do Parlamento com uma maioria absoluta estável só porque se embirra com o primeiro-ministro e se quer fazer um favor ao partido – em vez de provocar indignação ou, no mínimo, uma prudente reserva, levou a comunicação social a um paroxismo de entusiasmo com o senhor socialista que se seguia (esse mesmo, José Sócrates). Qualquer pessoa com espírito crítico funcional se questionava se havia alguma epidemia do foro neurológico que tivesse atacado a quase totalidade das redações portuguesas.
2014 não é 2002. Nem 2004. Pelo meio tivemos a boa governação socrática, que terminou com o país a necessitar de um resgate financeiro internacional. E se o PS aparentemente não aprendeu nada com o que presenteou o país (a parte que até aprendeu alguma coisa – a ala de Seguro – andou anos a fingir que não; e não sei bem o que é pior: se a incapacidade de aprendizagem, se a sonsice), muitos jornalistas e comentadores aprenderam.
Donde: agora que temos novo messias socialista (António Costa – persignemo-nos), a comunicação social já não se deixa arrebatar com tanta facilidade. É certo que há quem ainda refira a maravilhosa argúcia política de Costa porque este se distanciou da promessa de uma aliança à esquerda para remendar a sua promessa de aliança à esquerda.
Também não notei nenhum sarcasmo quando informaram que ‘a’ Cultura apoia Costa, a propósito da petição de gente ligada às atividades culturais que apoia Costa e se acha ‘a’ Cultura. (Presunção e água benta, cada qual toma a que quer. Sei lá por que razão, lembrei-me disto). De resto espero que esta moda persista no futuro. Tenho grandes expetativas de um dia também apoiar alguém e intitular-me ‘a economia’ ou ‘a blogosfera’
E, ainda, estranhei a ausência de notícias dando conta que Costa tinha espalhado por toda Lisboa cartazes congratulando Carlos do Carmo, que é por sua vez ‘a’ Cultura que apoia Costa na tal petição. (Já que estamos numa onda de celebrar desmesuradamente um Grammy latino, aproveito para informar que o meu filho mais novo passou para o cinto acima no karaté. Aguardo parabéns de António Costa. E se pudesse substituir um dos vários cartazes da minha rua celebrando o Grammy pela celebração do cinto, o miúdo ia ficar satisfeito.)
Mas como vivemos no pós 2011, há já muito quem note a vacuidade e a banalidade de tudo o que Costa (não) propõe. A ideia de ‘aumentar a riqueza’ para resolver os problemas nacionais foi legitimamente gozada em todas as casas portuguesas que albergam cérebros pensantes. E há a maçada das notícias das confusões nas contas da CML de 2013. Ou Alfredo Barroso fugindo do flip-flop de Costa quanto às alianças à esquerda. Ou a cedência total de Costa (com custo para o contribuinte de mais de 2 milhões de euros) para terminar a greve à recolha do lixo em Lisboa. Ou os boys PS, e familiares de socialistas proeminentes, que Costa albergou na CML. E se vier a liderar o PS, mais virão.
Em suma: os media vão ganhando juízo e a democracia cresce em altura e sabedoria.