Sigo com a atenção que me é possível o que se vai passando no Reino Unido nas chamadas guerras culturais porque elas assumem grande relevo e visibilidade nesse país, e, também, porque considero que ele constitui uma espécie de laboratório onde fermentam tendências ideológicas que vão, depois, repercutir no resto da Europa. Acredito que muitas delas se farão sentir por cá — como já acontece nalguns casos — e é justamente por isso que acho útil trazer aos leitores portugueses duas notícias recentes dessas guerras, bem como os comentários que elas me suscitam. Na primeira dessas notícias revela-se o delírio e o absurdo a que pode chegar a ideologia woke. Na segunda, ilustra-se a forma eficaz de lutar contra o wokismo.

1 Dando livre curso à corrente auto-flagelante que lhe corre nas veias, e prosseguindo a sua campanha para libertar a já libertada Inglaterra de qualquer resquício de envolvimento na há muito abolida escravatura, o jornal The Guardian publicou um artigo de Simon Hattenstone, um jornalista que deu em cismar no facto de o símbolo da cidade de Manchester ser um grande veleiro oitocentista de três mastros. Interrogando-se sobre o significado de tal navio, que aparece nos emblemas dos grandes clubes de futebol da cidade — o City e o United — e em vários dos seus mais antigos e prestigiosos edifícios, e sabendo que o fundador do Guardian (de Manchester) fizera dinheiro na indústria têxtil graças, em parte, ao algodão importado dos Estados Unidos e produzido por escravos e que alguns dos financiadores desse Guardian inicial tinham ligações ao mundo da escravatura, Simon Hattenstone ficou horrorisado quando percebeu aquilo que todo o mundo há muito sabe, ou seja, que eram navios que traziam o algodão dos Estados Unidos ou das Caraíbas até às fábricas de Manchester. Quando se deu conta de que eram, também, navios que, depois, levavam os tecidos produzidos nessas fábricas até aos quatro cantos do mundo, concluiu que eles eram não só “um símbolo do espírito comercial de Manchester”, mas, também, “um símbolo de exploração”. E assim sendo, como considera que esse símbolo está umbilicalmente ligado ao trabalho escravo, pretende removê-lo da cidade e dos seus clubes de futebol. Por outras palavras, não quer que Manchester continue a prestar homenagem aos navios, os instrumentos que tornaram possível o tráfico transatlântico de escravos.

O delírio a que o pensamento woke chegou não tem limite e começa a cansar os muito tolerantes ingleses. Ainda assim, e apesar do cansaço, alguns vão explicando que o navio foi adoptado como símbolo da cidade em 1842, ou seja, 35 anos após o tráfico britânico ter sido abolido e ter efectivamente cessado. Outros insistem em que o navio é um símbolo positivo. Não se trata de um navio negreiro, não é um navio algodoeiro — e que o fosse —, mas sim um navio que representa a indústria e o comércio que enriqueceram a Inglaterra e fizeram a prosperidade de Manchester. Transportava coisas produzidas por escravos? Sim, e muito mais coisas produzidas por gente livre. Mas para os woke nada disso é suficiente para lhes acalmar os escrúpulos, como se pode verificar neste vídeo. Partindo do princípio de que todos os grandes veleiros são negreiros ou aparentados querem que eles deixem de simbolizar a cidade.

Eu gostaria de dizer ao jornalista do Guardian e a todos os woke que perfilham o seu ponto de vista que, para serem verdadeiramente coerentes, então deviam também desejar que os próprios tecidos de algodão desaparecessem da face da terra, tal como as fábricas têxteis ou, até, a própria cidade de Manchester e os oceanos que permitiram que navios tão carregados de culpas e malfeitorias os sulcassem. Mais. Deviam suprimir o açúcar e outros produtos tropicais, e tudo o que a riqueza proveniente da sua produção e consumo permitiu acumular e adquirir pois tudo isso está “conspurcado”, “maculado”, por ligações, ainda que indirectas, à escravatura. E indo mesmo mais longe, visto que também houve tráfico de escravos da África subsariana para o Médio Oriente e o Norte de África, deviam lutar para que sejam apagados todos os desenhos de dromedários por simbolizarem as caravanas que comboiavam os desgraçados negros e negras na longa e mortífera viagem através do deserto.

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2 Por estarem eventualmente mais pressionados pelas exigências e reivindicações politicamente correctas, os britânicos — ou talvez seja mais acertado dizer os conservadores britânicos — reagem assiduamente a elas, combatem-nas de forma frontal e sem papas na língua.

Fazem-no em debates, artigos de opinião e, até, ao mais alto nível. Penso, por exemplo, em Rishi Sunak que, em campanha eleitoral, prometeu pôr fim aos disparates woke e aos agitadores de extrema-esquerda que os vão estimulando. Ou, então, em Kemi Badenoch, a sua ministra da Igualdade e do Comércio que, entre outras posições claramente anti-woke, contestou a ideia de que exista muito racismo institucional e estrutural no Reino Unido. E penso, claro, por ser, até ao momento, a voz mais nítida e frontal de todas, em Suella Braverman, a ministra do Interior que há dias, num discurso muito escutado e divulgado, disse o seguinte: “As pessoas brancas não vivem em estado especial de pecado ou de culpa colectiva. Ninguém deve ser culpabilizado por coisas que aconteceram antes de ter nascido. Aquilo que caracteriza a relação deste país (o Reino Unido) com a escravatura não é o facto de a ter praticado, mas sim de ter liderado o movimento que levou à sua abolição. Devemos estar orgulhosos do que somos. Mas reparem naquilo com que a esquerda radical se preocupa: quer descolonizar os curricula, exige reparações, denigre os nossos heróis, deita abaixo estátuas. Tudo isso visa corroer a convicção que as pessoas decentes têm na bondade do seu país. E quando nós, a maioria silenciosa, nos vemos forçados a erguer a nossa voz para objectar, somos atacados pelos extremistas. E somos nós que somos acusados de estar a fazer uma guerra cultural.”

Estas três pessoas que referi — Sunak, Badenoch e Braverman — têm em comum a particularidade de não serem brancas. Não sei se isso lhes tornará mais fácil a assunção de uma posição sobre o assunto, mas sei que faz com que essa sua posição seja politicamente mais eficaz, menos susceptível de ser considerada parcial e, consequentemente, menos atacável pela ideologia e propaganda woke.

Kemi Badenoch, uma pessoa de origem nigeriana que passou boa parte da sua infância e adolescência nos Estados Unidos e na Nigéria, chamou a atenção para o facto de alguém com a sua origem e proveniência — “that is amazing”, disse ela — ter sido recentemente candidata a primeiro-ministro do Reino Unido. Seria isso possível se o racismo estrutural impregnasse o país? E, apontando o dedo aos woke, disse que não percebe porque é que as pessoas ignoram ou esquecem as coisas positivas, se focam apenas no que é negativo, procurando contar a História com base nessas coisas negativas. É claro que a extrema esquerda britânica chama “reaccionárias negras” a Badenoch e a Braverman, mas isso manifestamente não as intimida nem acanha.

Em Portugal não temos governantes assim. É certo que já houve personagens políticas não-brancas que se pronunciaram contra aspectos da agenda woke, e há vários brancos, incluindo no PS, que não escondem a sua aversão a esse activismo. É também verdade que tem havido políticos do centro que têm resistido às pretensões de “descolonizar” estátuas, ruas, jardins e monumentos. Mas os governantes estão em silêncio ou, pior, já estão de mãos postas e joelhos em terra. O contraste entre a posição desassombrada de Suella Braverman, afirmando que os brancos não devem sentir culpa por coisas ocorridas há muito tempo, e a performance penitente do nosso Presidente da República que, discursando no 25 de Abril, decidiu pedir desculpa ao Brasil pela escravatura, salta à vista de qualquer um. E outro tanto se diga do silêncio verdadeiramente ensurdecedor da maioria do PS e do PSD sobre estes assuntos. Para quando, em Portugal, um governante que enfrente o wokismo? Para quando um Almirante Pinheiro de Azevedo sem medo do palavreado woke nem da sua fumaça?