Vários temas mereceriam esta semana ser tratados. Entre eles o Orçamento do Estado para 2021 que simbolicamente marcou o fim (ou pelo menos a interrupção) da Gerigonça, colocando o Governo nas mãos do PCP, como refere Paulo Trigo Pereira. Ou ainda a persistente falta de transparência das contas públicas, não se conhecendo quanto custou efectivamente o acordo com o PCP: o ministro das Finanças afirmou na entrevista à RTP que são apenas centenas de milhões e que já estava previsto na proposta. Como assim, já estava previsto?

Se a proposta de Orçamento não reflectia apenas as medidas que estavam anunciadas, então não correspondia à realidade e todos nós estivemos a trabalhar sobre uma ficção, incluindo a Comissão Europeia, à qual o Governo é obrigado a apresentar previamente as contas. Mas esse é um tema a que voltaremos. Neste processo de aprovação orçamental vale a pena regressar ao Novo Banco, o caso deste ano, com uma nunca vista interrupção dos trabalhos para negociar. Vale a pena olhar para o tema e perceber exactamente o que está em causa.

O Governo ficou, repentinamente, com medo dos mercados por causa do Novo Banco. Nem parece estarmos perante António Costa, que desafiou os mercados em 2015 ao fazer uma aliança inédita com o PCP e Bloco de Esquerda para governar. Na altura conseguiu acalmar os mercados. Agora ainda é mais fácil, basta explicar bem o que foi aprovado no Parlamento em vez de atirar lenha para a fogueira.

Vamos aos factos. A proposta do BE que se pode ver aqui (basta fazer uma busca por Novo Banco), basicamente converte a zero a despesa de 476,6 milhões de euros que o Orçamento iria permitir que o Fundo de Resolução transferisse para o Novo Banco. E foi aprovada pelo BE, PSD, PCP, Verdes, Chega e pela deputada independente Joacine Katar Moreira (112 deputados) tendo votado contra apenas o PS, a Iniciativa Liberal e a deputada independente Cristina Rodrigues. Abstiveram-se o CDS e o PAN

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Foi uma votação renhida que desencadeou múltiplas frentes de negociação com o PS a tentar convencer Joacine Katar Moreira, os deputados do PSD Madeira e até o deputado do Chega. Em anos de votações do Orçamento nunca se tinha visto nada assim, com o plenário a ser interrompido duas vezes para as negociações e com a igualmente inédita mudança de voto dos deputados do PSD da Madeira. O Governo dramatizou, o PSD desdramatizou, assumindo o compromisso que votaria a favor de uma rectificação do Orçamento para viabilizar a capitalização do Novo Banco, quando fosse chegada a altura. Todo Orçamento, designadamente as conquistas do PCP, ficaram na sombra.

Dos compromissos assumidos percebeu-se que está fora de questão inviabilizar a capitalização do Novo Banco, neste momento estimada em quase 500 milhoes de euros (e já vamos perceber como é que já se sabe). A capitalização está dependente do resultado da auditoria que está a ser feita pelo Tribunal de Contas, mas pelo que o PSD já disse ou deu a entender, nunca estará em causa o aumento de capital do Novo Banco. Caso se venha a concluir por irregularidades, as suas correcções poderão ser subsequentes ao calendário do aumento de capital. O BE mantém em aberto todos os cenários, afirmando que avaliará a situação na altura, como se pode ler na entrevista que a deputada Mariana Mortágua deu ao Público.

O que querem os partidos que retiraram aquela despesa do Orçamento? Pretendem, em termos gerais, que o Governo explique as necessidades de capital quando ela se concretizar e, de preferência, terem na mão a auditoria do Tribunal de Contas. Querem, em suma, ter a oportunidade de escrutinar mais um aumento de capital do banco, usando recursos do Estado no curto prazo – sim, serão os bancos a emprestar e a pagar a prazo, mas neste momento pesa nas contas públicas.

O BE mais não fez do que garantir que desta vez se concretizava aquilo que que já tinha pedido anteriormente, até com o compromisso do Governo. O drama da Primavera deste ano, que quase levou à demissão do então ministro das Finanças Mário Centeno, teve como pano de fundo o compromisso que António Costa julgava poder cumprir: o de esperar pela auditoria da Deloitte antes de concretizar o aumento de capital do Novo Banco. Um processo que envolveu até o Presidente da República, que na altura também considerou que só se devia fazer a transferência para o Novo Banco depois da auditoria.

Desta vez, o Governo não pode ficar-se apenas pela promessa de que só realizará a injecção de capital depois da auditoria, desta vez do Tribunal de Contas. Não tendo autorização para realizar essa despesa, terá de ir explicar aos deputados as razões da necessidade desse dinheiro, esteja ou não a auditoria concluída. Do ponto de vista do escrutínio público, ficámos todos a ganhar.

Todo este processo coloca várias interrogações. A primeira é, porquê só agora é que os partidos, nomeadamente o PSD, se mostram preocupados com as injecções de capital no Novo Banco.  O BE sempre levantou problemas, desde o primeiro momento em que se opôs logo à venda do banco ao Lone Star. Tal como o PCP, defenderam a nacionalização.

As razões que levam a que o BE (e o PCP) consigam agora mais o PSD para a sua batalha pode encontrar-se no que tem vindo a ser divulgado em matéria de venda de activos do Novo Banco, designadamente pelo jornal Público. Entre esses negócios estão a venda da GNB Vida, a venda das carteiras de imóveis e de crédito e, mais recentemente, a mal explicada  substituição de três administradores. O Lone Star optou mesmo por ir buscar um administrador de origem espanhola para ficar com a responsabilidade do negócio de empresas, revelando uma liberdade estratégica que nunca, por exemplo, o Santander conseguiu em Portugal sem que merecesse duras criticas.

Todo este processo recente leva a que os protagonistas políticos mais críticos coloquem em cima da mesa duas alternativas que podem não ser mutuamente exclusivas: ou o contrato de venda, que não é público, está feito de forma que incentiva e viabiliza estes negócios ou existem menos-valias que não correspondem à realidade.

A balança neste momento pende mais para a hipótese de o contrato de venda incentivar, implicitamente, a maximização de perdas a serem suportadas pelo Fundo de Resolução, sem que nada de ilegal esteja a ser feito. Alguns exemplos. Um dos casos que suscitou criticas foi a venda de uma carteira de imóveis, o designado projecto Viriato, ao fundo Anchorage, concedendo-lhe, ao mesmo tempo, um empréstimo. A operação é em si vulgar na banca – emprestar para lhe comprarem activos. Mas um banqueiro que tenha igualmente como objectivo minimizar as necessidades de capital que tem de pedir ao accionista fará esta operação de forma a poupar os accionistas, dando prioridade a “poupar” o balanço, em vez de se focar nos juros que vai receber do empréstimo. Se as necessidades de capital forem “gratuitas”, ou seja, se a conta for para o Estado, há um forte incentivo para trocar juros mais altos do empréstimo – que vão para resultados – por um desconto maior no preço dos activos.

Um segundo incentivo que o contrato pode ter é viabilizar aplicações com maior rendibilidade mas que “comem” mais capital. Finalmente, há um terceiro desenho do contrato que não é amiga de poupar o capital ao Fundo de Resolução: o facto de os prémios aos gestores não estarem indexados ao seu desempenho em matéria de necessidades de capital.

A auditoria do Tribunal de Contas pode ser determinante para se conhecerem as características do contrato, nomeadamente se tem os incentivos alinhados no sentido de poupar recursos públicos ou se, pelo contrário, os 3,89 mil milhões de euros estavam, na prática, garantidos.

Há outros aspectos que fazem deste processo mais um caso em que se levantam dúvidas sobre a actuação das entidades europeias, nomeadamente a Comissão Europeia. Por exemplo, não existiriam outras instituições interessadas se soubessem que o contrato tinha estas características? Ou como é que a Comissão Europeia concilia um contrato com estas características com a defesa da concorrência no sector.

Há muitas perguntas que poderemos ver finalmente respondidas caso o Tribunal de Contas analise o contrato de venda – temos a experiência de que o faz com elevada qualidade, como vimos na avaliação realizada à reversão da privatização da TAP. E a resposta a essas questões do contrato podem deixar o Governo numa situação pouco confortável. E é essa fuga ao escrutínio que pode explicar a dramatização que estão a fazer, o Governo e o PS, com a decisão do Parlamento de apenas autorizar a transferência de capital na altura em que a questão se colocar, que é na Primavera. E mediante explicações.

A dramatização que o Governo fez é ainda menos compreensível se nos lembrarmos que a declaração de António Costa na Primavera deste ano, quando disse que só se fazia a transferência depois de conhecida a auditoria quando na realidade já se tinha realizado, era muito mais grave. Na altura já era do conhecimento público a necessidade de capital do Novo Banco, o que não acontece agora. E a não realização do aumento de capital levava, de facto, o banco a violar os rácios de capital com consequências graves.

É verdade que, neste momento, o supervisor e o banco já conhecem, tal como os outros bancos, o capital que vão necessitar em 2021, na sequência do exercício SREP (Supervisory Review and Evaluation Process) que é realizado no último trimestre do ano. No quadro deste processo, os bancos apresentam as suas previsões e estratégia e, a partir daí, é definida a necessidade de capital. É neste quadro que se percebe a preocupação do primeiro-ministro em telefonar para a presidente do BCE, mas não mais do que isso, uma vez que tem a garantia de viabilização das verbas, num orçamento rectificativo, pelo maior partido da oposição.

Temos de ser capazes de conciliar o escrutínio, que é obrigação do Parlamento fazer, com as obrigações contratuais, sem dar ao Lone Star nenhuma desculpa. Não podemos repetir os mesmos erros e voltar a ter medo dos contratos, como aconteceu com as rendas excessivas da energia. Os deputados têm o direito e o dever de escrutinar a venda do Novo Banco. Podem ter sido irresponsáveis por não terem explicado, logo na noite de quarta-feira, 25 de Novembro, o que estava em causa. Mas é tempo de desdramatizar, até para que os investidores percebam que não está em causa o cumprimento do contrato de venda mas sim o seu escrutínio.

Foi o Governo, na prática, que semeou esta situação limite, de condicionar a transferência às explicações que deve ao Parlamento, quando se foi esquivando sucessivamente ao escrutínio. Vamos ter calma, desdramatizar e esperar que o Tribunal de Contas analise o contrato. Na Primavera lá estará mais dinheiro para o Novo Banco, esperemos que a percebermos melhor que negócio foi este.