1. Era quase meia noite e chovia. Íamos a entrar no Santuário do Senhor da Pedra, para a missa do Galo. Natal fora de portas, as muralhas do Castelo de Óbidos ali mesmo, debruadas de mil fios brilhantes, cintilando na noite fria, o eco do coro ensaiando dentro da igreja, gente chegando das redondezas. Subitamente apercebi-me de como era verdadeira, real, concretíssima, aquela harmonia entre todos os que ali estávamos, uma terna cumplicidade, uma mudez quase comovida, sentimento de pertença na convicção comprometida com o recado do Presépio.
Mais tarde, os ciprestes, a palmeira, as camélias e esse inconfundível silêncio do campo, deram-nos as boas vindas quando as várias gerações da nossa tribo aportaram ao calor aconchegante da casa, para a consoada.
E foi então que olhando aquele milagroso pequeno-grande quadro familiar, por uns brevíssimos ilusórios momentos, o mundo e a vida pareceram-me mais que perfeitos.
2. Alguma gente que estimo reteve o adjectivo com que na passada semana abordei o Natal de 2017: “inquieto”. E não é? O breve apontamento natalício que descrevi, em nada desmente a consciência da inquietação porque as palavras acima não são desligáveis da sua efémera natureza: um momento de luz, que iria esmocendo, apagado pelo estado das coisas.
Olhe-se à roda, o difícilé captar qual a mais inquietante, qual a que nos capturará decisivamente, a que nos extinguirá como produtos de uma civilização que ao consenti-las tão abulicamente se desmembra, fragiliza e nos fragiliza a nós. Não falo só da guerra (também falo); de lideranças políticas loucas ou miseráveis; da desordem internacional, das ameaças, do medo, pão nosso quotidiano. Nem sequer da galopante desigualdade, cada vez mais voraz.
Falo de uma sulfúrica espécie de mal, insidioso veio que tem vindo a corroer valores, razões morais, comportamentos, convicções, de uso e prática nesse ocidental lugar de onde vimos e somos (mas parece que agora já não nos deixam ser), substituídos por um Novo Código de Conduta, baseado em desqualificados mandamentos. E como tal aí esta hoje uma atenta, vigilante e policial guarda pretoriana, o Novo Código numa mão, na outra, denúncias, nomes e medidas censórias de aplicação imediata. Excesso e perseguição sobre fundo de impostura. (Sobre isto mesmo, leia-se aqui no Observador o último texto de Helena Matos)
Escasseiam-me os instrumentos de bordo para navegar na irracionalidade a que nos obrigam; para me formatar segundo esta nova geometria politicamente correcta do “como” pensar; arrepia-me a voragem da perseguição/queixa a tudo o que não esteja conforme aos novos usos e costumes. Pelos vistos tão pacificamente aceites e militantemente praticados pela generalidade (?) das elites intelectuais, culturais, científicas, do mundo livre.
Veja-se o puro gozo que conduz as acusações/perseguições relativas ao assédio sexual, que por vezes quase lembram processos nazis pela implacabilidade com que irrompem, sentenças de morte sem julgamento. Ou atenda-se ao actual questionamento — imbecil e inteiramente descontextualizado — de algumas telas ou pinturas, obras de arte universais cujo traço ou mensagem “colide” com as alíneas do Novo Código para captar a demencialidade desta cruzada feroz de incalculáveis e maléficas consequências. Triste sorte.
Dir-se-á que a civilização ocidental já conheceu pior e não soçobrou, que o valor da liberdade tem-lhe sido guia e farol e que de tudo tem renascido. É verdade. Sucede que conheço tais más sortes dos livros de História ou de as ter estudado enquanto aqui — e a diferença é forte — sou testemunha pessoal. Observadora directa e inquieta.
Não é bonito o que vejo.
Cada vez olho mais para nós como um sonâmbulo navio que devagarinho se vai afastando da costa para lado nenhum.
3. Já uma vez aqui deixei este bocadinho de poesia em estado quimicamente puro. Escreveu-o há anos e anos um tio com queda para cantar as palavras. Mas de tão belo, quase prosaico na simplicidade do seu contar poético, lembrei-me dele outra vez este ano e fui buscá-lo à gaveta do computador.
Boas Festas:
Quando o Menino Jesus fez cinco anos
Encheram-lhe a caminha de presentes.
Os seus vizinhos e os seus parentes
Vieram muito honrados, muito ufanos,
Presentear Jesus, que lhes sorria…
Chegou primeiro sua avó Sant’Ana,
Com uma gaiola e uma cotovia.
Zacarias, sem falar, pois não podia,
Deu-lhe uma flauta, que Ele fez de cana.
Santa Isabel,
Que costurava quase todo o dia,
Deu-lhe um lindo vestido de burel.
S. João, filho de Zebedeu,
Trouxe-lhe um cordeirinho igual ao seu
E umas romãs, de rubicundos bagos.
E vieram lembranças dos Reis Magos…
(Um ano antes, Jesus teve uma birra
Porque tornaram a mandar-lhe mirra,
Porque voltaram a mandar-lhe incenso,
O que o Menino Jesus achou esquisito…)
E então mandaram tâmaras do Egipto,
De que o Menino Jesus gostava imenso!
Seu Pai, e sua Mãe, Nossa Senhora,
Tinham feito os seus planos.
E numa caixa de madeira loura
Tinham metido, com o maior desvelo,
O seu presente de anos:
Um serrote de dentes muito finos,
Alicate, martelo,
E uma dúzia de pregos pequeninos.
E quando lhe entregaram o presente,
O Menino Jesus deu pulos de contente!
A ideia, claro, foi de S. José,
O melhor carpinteiro em Nazaré.
Ao fim da tarde, terminada a festa
Do Natal de Jesus,
Quando a Senhora acendia a luz
E S. José dormia a sesta,
Foi acordado por barulho enorme.
“Mas então o Menino ‘inda dorme?
Que está ele a fazer?
Maria vai tu ver…”
Mas a Virgem, com um sorriso brando,
Disse-lhe: “Deixa-o lá…Está trabalhando.
Quer fazer-nos talvez uma surpresa,
A consertar,- quem sabe?- o pé da mesa
Que tu ontem partiste na cozinha…”
E o Menino Jesus, candeia acesa,
Martelava com quanta força tinha…
Todas as tardes era a mesma cena:-
S. José dormia a sesta vespertina;
A Virgem Intrigada, mas serena;
E um martelar sem fim na oficina…
Até que um dia… S. José quis ver.
Disse a Maria:Ӄ tempo de saber
O que o Menino há tantos dias faz…
Francamente, não sei…
Que pode ele fazer, não me dirás,
Com dois ou três sarrafos que eu lhe dei?
Vamos espiar, a ver o que será…
Achas feio espreitar?
Pois vai-te tu deitar,
Que eu levo esta candeia e volto já…”
E assim fez. Pé ante pé,
Tapando a luz da lâmpada co’a mão,
Afastou-se da Virgem S. José…
Silencioso, tal como um ladrão…
Da oficina vinha estranha luz…
Empurrou a porta, mansamente.
Hesitou… Abriu-a, finalmente.
E S. José ficou petrificado,
Os olhos muito abertos, transtornado…
O Menino Jesus
Tinha feito uma cruz!