No dia 10 de junho, assistimos a pomposos desfiles militares, não contei quantos foram, mas só sei que enquanto deixei a televisão ligada, pareceram horas e horas intermináveis de homens e mulheres, vestidos a rigor, com os seus crachás de honra, a bambolear as suas pernas e braços retos para aqui e para acolá. Passa a imagem de um país com ar cinzento, cheiro a mofo e a bafio, sem coroas de folhas de louro e sem poesia. Os tempos não estão para poesia, é verdade, mas já Camões dizia que “todo o mundo é composto de mudança”. Mas que é dela?

Falta-nos rasgo, emoção e verdade. Que diria Camões, cujas mãos escorriam intensidade no amor, na aventura, na vida? Às vezes dou por mim a sonhar com um país menos cinzento, menos quadrado. Que, de repente, as paradas militares enfadonhas se transformassem numa outra coisa. Que Marcelo, ou outra personagem qualquer, desembolsasse um poema e o declamasse com alma, que arrancasse a gravata e se despisse das aparências.

Há 5 séculos, Camões desejou “numa mão a pena e noutra a lança”, mas ainda só temos as lanças. As penas atrapalham a brutalidade das lanças. O mundo que Camões tanto sonhou para nós ainda não existe, a palavra ainda não tem a importância que o poeta desejou que se lhe desse. Os “velhos” criticam os “novos” por serem uns ignorantes que desprezam o Camões que se aprende na escola. Mas como querem os “velhos” atrair os “novos” para a cultura se desprezam a mudança e não sabem dançar ao sabor dela?

Tenho sido explicadora de português de alunos entre os 10 e os 18 anos durante todo o meu percurso universitário, e sim, é verdade que numa turma de 30 alunos, há no máximo 4 que leem Os Maias. Em 30 alunos, não sei se chegam a 2 os que se encantam com as palavras de Camões. Isto também me entristece, mas não podemos ficar parados que nem estátuas perante a inevitabilidade da mudança dos tempos que de Camões tanto nos falou. A mudança dos tempos só se combate com mais mudança.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em vez de nos escandalizarmos com a importância que as novas gerações dão a fenómenos do género Taylor Swift e de os acusarmos de ignorância, que tal falarmos de Camões como se ele fosse um de nós? Camões também foi um jovem, um adolescente, um homem cheio de desgostos de amor, cheio de dúvidas e de sentimentos intensos. Camões quis certamente desistir, quis esconder-se, quis atirar a toalha ao chão. Camões sentiu-se um “bicho da terra tão pequeno”. Quem é o jovem que não se sentiu assim aos 15 anos? (Sejamos francos, quem não se sente assim a vida inteira?) Ter 15 anos é uma idade mágica para ler Os Lusíadas, para ler a lírica camoniana. Quem poderia perceber melhor os desgostos de um jovem do que Camões? Mas porque não falamos de Camões assim? Porque não o descrevemos com toda a sua humanidade, com todas as suas lágrimas, com todos os seus infortúnios?

Chega de ensinar Camões como se fosse o poeta bafiento, que dá nome ao dia de Portugal e que é mote para as paradas militares mais enfadonhas da história. Camões era amor e morte, desespero e euforia, perguntas sem respostas, era um eterno adolescente, um eterno pensador. Camões percebeu os nossos sentimentos como ninguém, mas porquê reduzi-lo a frases feitas manhosas, porquê reduzi-lo a uma teoria massuda e sem implicações humanas? O mundo mudou, os jovens mudaram, sim, mas não fiquemos apenas parados a lamentarmo-nos da mudança.

Não é fácil conquistar as crianças e os jovens, mas não é impossível. Acompanhei durante 2 anos uma aluna que acabou este ano o 10.º ano. Com ela, passei muitas tardes a ler Os Lusíadas e a lírica camoniana. Às vezes, dizia-me: “É difícil…, é um bocado complexo”; eu respondia-lhe “Pois é, mas é o que ele está a sentir, ele sentia contradições, ele é como nós, e os poemas deles são isso, não há respostas completamente certas”. A pergunta tão comum nos manuais de Português: “Descreva o estado de espírito do sujeito poético” sempre me deu alguma vontade de rir. É preciso revelar aos alunos que, por vezes, nem nós sabemos o que Camões estava a sentir. É preciso sair de um pedestal para falar de poesia, é preciso arriscar dizer “nem eu sei, o estado de espírito dele é um verdadeiro emaranhado de emoções!”.

No último dia antes das férias lectivas, folheámos a matéria que ela iria dar no próximo ano. Contei-lhe as histórias, rimos a falar sobre as personagens, e ela ficava com um brilho nos olhos quando ouvia sobre os irmãos que dormiram juntos, sobre os pais que se enclausuraram num convento porque desonraram a filha, sobre a filha que lhes morreu tragicamente nos braços, sobre os desastres de amor sem fim. Falei-lhe do Simão e da Teresa, das cartas de amor. Disse-lhe: “Sabes que o Camilo Castelo Branco também foi preso, tal como o Simão, mas porque se apaixonou por uma mulher casada?”. Ela esbugalhou os olhos e perguntou “A sério? Então ele escreveu sobre a vida dele”. Diverti-me muito com ela e espero que ela também se tenha divertido comigo, não há nada que pague ver a curiosidade nos olhos de alguém que tentámos ensinar.

Não tenhamos medo das mudanças do tempo e não nos afastemos dos jovens. Nós percebemos, mais do que pensam, quando nos tratam com paternalismos e como se fôssemos ignorantes.