1 O tema do aborto reveste-se de grande actualidade, é de abordagem complexa, arriscada (sobretudo para quem sobre o mesmo ousa questionar…); é um tema sensível, polarizador, gera múltiplas controvérsias; divisor de águas, porventura. Há quem o classifique como o tema-símbolo da “guerra cultural”, será? Resta-nos, para evitar o caos, começar pela questão primeira, essencial: saber que valor atribuímos à vida humana, e em particular à vida do embrião? Ela tem um valor intrínseco, por definição, pela sua própria natureza? Ela deve ser preservada e protegida, independentemente do seu estado de desenvolvimento físico e intelectual, do sexo e da idade, do estado de saúde ou doença, da raça? Ou não? Recordemos que “a vida é o primeiro e mais fundamental dos direitos, pela simples razão de que sem ela nenhum direito humano é possível”. A Ciência (curiosamente, há quem pense que a ciência nada tem a dizer sobre o assunto…) garante-nos, sem qualquer tipo de dúvida, que no momento da fertilização, forma-se uma nova entidade biológica, o Zigoto, o qual é portador de um programa genético individualizado, único e irrepetível. Este novo ser humano (que mais poderia ser) controla de forma continuada, harmoniosa e sem interrupção todo o seu processo de desenvolvimento até final da gestação, desde que lhe seja, obviamente, permitido fazê-lo. Finalmente, é ele, o bebé, que determina o dia em que vai nascer. Keith Moore (1925-2019), um grande nome da embriologia mundial, diz-nos que “o desenvolvimento humano começa no momento da fertilização, quando o óvulo da mulher é fertilizado pelo esperma do homem. O desenvolvimento humano envolve diversas alterações e transformações que transformam uma célula única, o zigoto, em um ser humano multicelular”. (Quem nunca foi embrião que levante o braço).
2 O que dizem e defendem os militantes “Pró escolha”
- Os defensores do aborto começam por exacerbar a dimensão política do tema, afirmando que a esquerda, os “mente aberta”, os progressistas, defendem a mulher e o seu inalienável direito ao aborto. Já a direita obscurantista, ultra conservadora e machista, está contra a mulher e contra o aborto. É preciso desmascarar estes estereótipos artificiais, estes chavões e rótulos ideológicos, que nos dispensam de pensar, e apenas pretendem colocar etiquetas, dividir e polarizar. A vida é um valor pré político, que se sobrepõe a todos os outros. Todos, independentemente das diferentes sensibilidades políticas, culturais e religiosas, somos chamados a promovê-la e a protegê-la;
- Os defensores do aborto têm de ignorar, ou pelo menos relativizar, os avanços da ciência e têm, assim, a tarefa incontornável de explicar porque é que o embrião não é um ser humano, ou pelo menos não é um ser humano em plenitude (seja lá o que isso for);
- Os defensores do aborto defendem que o embrião é uma vida em potência, é apenas uma “promessa de vida” e não propriamente uma vida plena, pelo que o mesmo não pode ser titular dos direitos inerentes à pessoa humana;
- Os defensores do aborto priorizam a autonomia do corpo da mulher em detrimento dos direitos do embrião. Esta é uma das suas grandes bandeiras. Ron Paul, importante médico e político norte americano, defende que: “do ponto de vista médico e científico, a questão não é se a vida humana existe imediatamente após a fecundação. Ela, de fato, existe”. E portanto, mesmo que se considere o embrião como uma pessoa deve, de acordo com o mesmo autor, ser garantido à mulher o direito de interromper a gravidez. Ela é dona do seu corpo, podendo por isso decidir se leva ou não a gravidez até ao fim. Posições mais radicais nesta linha defendem mesmo que “o embrião não passa de um intruso parasita, um amontoado de células”. Também Judith Thomson, filósofa americana especialista em ética, defende que: “ter o direito à vida não é garantia de um direito cujo uso lhe seja dado, nem de ter um direito de poder continuar a usar o corpo de outra pessoa, mesmo se a própria vida de alguém depender disso”. Murray Rothbard, economista libertário da Escola Austríaca, defende que, logo a partir do momento da concepção, ainda que o embrião seja uma vida humana, não lhe deve ser reconhecido uma espécie de “direito à vida universal”. O embrião é um ser dependente da mãe até ao momento do nascimento e, por essa razão, é biologicamente uma vida “parasitária”. O seu direito à vida não deve, de acordo com o mesmo autor, sobrepor-se ao direito legítimo da mãe, de o poder, no limite, abortar. Finalmente, Ayn Rand, filósofa criadora do Objetivismo, também defende que um embrião não tem direitos. Refere que “os direitos não pertencem a um potencial, apenas a um ser real”; só existem direitos a partir do nascimento.
Todos estes testemunhos mostram-nos que, para os militantes “pró escolha”, existem limites no direito à vida; este não deve ser considerado um valor absoluto. O direito à vida não deve incluir o direito de usar o corpo de outra pessoa, neste caso o da mãe. Já a mãe, não deve ser obrigada a aceitar essa imposição; o direito à vida do embrião não deve sobrepor-se à soberania da mulher sobre o seu corpo.
3 O que dizem e defendem os militantes “Pró vida”
- Para os opositores ao aborto a vida tem o seu início no momento da concepção e decorre continuadamente e sem interrupções até ao fim da gravidez. A Biologia garante-o, considerando que “vida humana”, “ser humano” e “pessoa” são exactamente a mesma coisa. É um novo organismo, é um novo ser chamado à existência num determinado momento. É uma falácia negar a existência desta nova vida, negar que é um ser humano, negar o essencial da sua natureza humana. O zigoto, garante a genética, é a primeira realidade corporal do novo ser humano.
- Defendem os pró escolha que ninguém pode obrigar uma mulher a ser mãe. Mas tal é também uma falácia, pois mãe já ela é, logo desde a fecundação; a questão é saber se esta mãe leva a sua gravidez até ao fim;
- O direito fundamental à vida garante-nos a igualdade de todos perante a lei;
- É uma impossibilidade jurídica, legal, ontológica, científica… medir o grau de humanidade de um embrião para decidir o tipo de direitos que o mesmo tem;
- Defender a tese de que o embrião ainda não é um ser humano pleno e completo porque ainda não passou por um certo número de formas evolutivas, porque ainda não se implantou no útero materno, porque ainda não tem actividade cerebral, etc, etc, é considerar cada uma das fases de desenvolvimento humano desligada de um todo, de uma totalidade viva que é o embrião. É ter, finalmente, uma concepção materialista, mecanicista e utilitária do ser humano e da vida;
- A questão da vida humana (e da morte) deve ser considerada de forma global, numa perspectiva integral que transcende a dimensão meramente biológica, psicológica ou demográfica. Na verdade, o ser humano tem um carácter essencial; a concepção e o nascimento, a infância e a maturidade, a saúde e a doença, a vida e a morte, pertencem ao todo a que chamamos Homem. Todas são fases da sua existência, da sua totalidade enquanto Homem. O Homem não é apenas natureza, biologia, fases, etapas, crescimento e multiplicação celular; o Homem é também história, memória, trajectória, desenvolvimento e destino;
- A palavra “Nasciturus” (nascituro) significa precisamente “destinado a nascer”. De acordo com vários autores: “A sua vocação é desenvolver-se, crescer, nascer, não é ser eliminado. E, por isso mesmo, a gestação é o processo de crescimento do nascituro; ele desenvolve-se não para um ser humano, mas como ser humano”. Ou seja, o embrião não se desenvolve para vir a ser um ser humano, ele desenvolve-se como ser humano!
4 Falácias e incongruências a favor do aborto.
Daremos, seguidamente, alguns exemplos que expressam o essencial da habitual linha de argumentação “pró escolha”. A saber: “como vai continuar a realizar-se o aborto, quer o mesmo seja legal ou não, mais vale então descriminalizar a sua prática e, deste modo, criar melhores condições para as mulheres que desejem abortar”, ou “eu não faço aborto, mas não tenho o direito de impedir que outros o façam”, ou “tu decides por ti, não queiras também decidir o que os outros devem ou não fazer”, ou ainda, “o facto de existir uma lei que permite o aborto nada obriga a que uma pessoa o faça”. O pensamento “pró escolha” defende, então, que a mulher é dona absoluta do seu corpo e por isso deve ser exclusivamente ela, e não o pai, a família, o estado ou a religião a decidir o destino da sua gravidez. Perante esta forma de pensar, que se generaliza de forma imparável na sociedade contemporânea, há que observar com firmeza várias questões de princípio:
- Não se pode legalizar algo que é intrinsecamente mau, perverso, errado (roubar é crime, mas haverá sempre roubos. Por isso, o melhor é descriminalizar o roubo e, deste modo, fornecer melhores condições aos ladrões, para que estes não corram riscos no confronto com a polícia; obviamente são coisas diferentes mas o vício de raciocínio é o mesmo;
- Enquanto o aborto for ilegal, as mulheres pobres fá-lo-ão na mesma, e sempre em condições precárias; já as mulheres ricas não terão esse problema. É evidente que, se o aborto é mau, não vamos legalizá-lo para não penalizar as mulheres pobres que o fazem em condições mais arriscadas. Seria estar a fugir à questão. (tal como não vamos legalizar a pedofilia porque os pedófilos pobres não têm capacidade para viajar para outros países fazer turismo sexual; também aqui estamos a falar de coisas diferentes mas o vício de raciocínio é, ainda, o mesmo);
- é uma contradição moral flagrante aceitar-se que “o aborto elimina uma vida” e, simultaneamente, sustentar que “o aborto deve ser legal”. Todos estes argumentos “pró escolha” seriam absolutamente legítimos e correctos se o acto de abortar fosse algo moralmente neutro, algo que não fosse bom nem mau. Os comportamentos e escolhas moralmente neutras não têm de ser aplaudidas ou criticadas, proibidas ou autorizadas. O mesmo não se passa com o aborto que constitui, por mais que nos custe admitir, a eliminação de uma vida humana. E por isso, defender a tese de acordo com a qual “ lá porque eu não o faço, não quer dizer que devo impedir que outros o façam” é simplesmente um absurdo moral, um contra senso legal e jurídico, que se torna ainda mais evidente quando se troca o acto de abortar por roubar, violar ou raptar. Para os defensores do aborto, o embrião não é ainda um ser humano; é-o apenas em “potência” pelo que o mesmo não goza ainda de plenos direitos, como o direito à vida. É um mau argumento já que parte de um pressuposto incompleto, redutor; pois o embrião não é só, em potência, um ser humano; o embrião é desde logo, ainda que numa fase prematura, um ser humano, gerado por dois seres humanos (que também foram embriões) e que, de acordo com a espécie humana, tem a sua primeira manifestação corporal no útero da mulher. Por outro lado, quem decide se o embrião em gestação pertence ou não à humanidade não pode ser um mero e circunstancial consenso social, mas sim a própria natureza das coisas. Se a condição de “ser humano” dependesse de uma mera convenção ou consenso social, de um plebiscito, de uma votação maioritária; nada impedia que num posterior momento tudo se alterasse, negando-se assim a humanidade a quem não reunisse os requisitos dos novos termos (deficientes, transexuais, ciganos, judeus, anões, etc).É evidente que a liberdade não pode ser vivida como um valor absoluto, por maioria, sem discernimento moral, sem balizas, sem limites; seria uma espécie de liberdade negativa.
5 Manipulação da linguagem.
A introdução de uma nova linguagem (a ONU é especialista) “mascarada”, desconhecida e ambígua, é uma realidade (termos, expressões, vocábulos; a IVG é, neste âmbito, um dos clássicos da mentira contemporânea: uma interrupção é algo que se retoma, não é o caso). Esta nova linguagem vai-se infiltrando lentamente no imaginário colectivo das pessoas e vai impondo uma agenda com determinados interesses ideológicos, culturais, económicos, demográficos, mais ou menos explícitos, mais ou menos perceptíveis (e mais ou menos negociados). É preciso desmascarar esta estratégia de Manipulação da Linguagem que está na base das enormes falácias contemporâneas a que chamamos igualdade de género (ou seja ideología de género), educação sexual, saúde sexual, direito de escolha, direitos reprodutivos (ou seja aborto), morte digna (ou seja eutanásia)… e a partir da qual, depois de normalizada, uniformizada, massificada, generaliza-se pelas populações e legítima, potencia e mesmo incentiva as práticas referidas, como o aborto. E sempre sob a capa dos direitos humanos, da democracia e da liberdade, do direito à saúde, dos direitos reprodutivos, do direito à escolha, etc.. Todas estas manobras manipuladoras e falsificadoras têm, por outro lado, um efeito insensibilizador e anestesiante das consciências, contribuindo decisivamente para que se crie a ideia de que, práticas como o aborto não são, afinal, assim tão reprováveis, tão censuráveis, tão condenáveis. É um engano, é uma ilusão, é uma mentira! As consequências são múltiplas, dramáticas, algumas irreverssíveis; desde logo, para a criança que não chega a nascer, mas também para as mulheres (a segunda vítima do aborto) que ficam profundamente marcadas fisicamente, psicologicamente e espiritualmente. Desde os anos 80, o embrião foi sendo apelidado de diferentes maneiras; adoptou-se o nome de pré embrião, mais tarde surge o termo de viabilidade até que o mesmo embrião se implante, mais tarde o termo de bases neuronais da consciência, que surgem na 8ª semana. Ou seja, foi-se chamando ao mesmo ser humano diferentes nomes, o qual, na verdade, tem o mesmo valor humano, tem a mesma continuidade ontológica. Mais uma vez, de forma artificial, manipulada e anestesiante, se vai banalizando e relativizando o valor do embrião, se vai colocando na consciência das pessoas a ideia de que não se estaria, afinal, a falar do mesmo ser, da mesma vida humana. O ser humano, contudo, é único, tem um valor intrínseco, por si só, decorrente da sua própria natureza; e é-o desde logo, esteja ele em fase embrionária, esteja já, ou não, implantado no útero materno, tenha já, ou não, actividade cerebral, esteja na iminência de nascer, seja recém nascido, criança, adulto ou velho. É preciso denunciar a manipulação da linguagem e recuperar o sentido e o valor das palavras.
6 Conclusões.
Realizam-se em todo o mundo, de acordo com os dados da ONU, mais de 50 milhões de abortos por ano; número equivalente às vítimas da Segunda Guerra Mundial. São números impressionantes, chocantes e avassaladores. Quais foram os movimentos filosóficos, sociais e políticos que nos conduziram até aqui? Que processos ideológicos criaram condições para que, a pouco e pouco, se fosse perdendo o conceito do Bem objectivo? Que correntes de pensamento foram dissolvendo o conceito de Consciência, e foram cultivando a ideia de que a razão subjectiva da pessoa que decide se deve sobrepor ao valor da vida? Pensadores contemporâneos analisaram este processo de eclipse dos valores objectivos, constatando o predomínio da liberdade individual (neste caso da mulher), sobre o valor da vida (neste caso do embrião). Como chegámos até aqui? O Secularismo (o viver como se Deus não existisse e uma cultura hedonista que faz do Homem “a medida de todas as coisas” ) e o Relativismo Moral (cada um tem a sua verdade; a ética da autonomia e uma espécie de liberdade negativa sem regras, sem limites) são o caldo de cultura poderoso que elevam a autodeterminação da pessoa a bem supremo. São estes movimentos ideológicos que impregnam a nossa escola, a universidade, a media, a cultura e as artes, as nossas famílias e, pasme-se, até sectores da Igreja Católica, construtora da civilização, outrora cristã. Na verdade, só uma concepção materialista da vida, hiper legalista (se está na lei então pode-se fazer), só uma visão meramente funcional e utilitária da existência poderia decretar que é a vontade popular que determina se o aborto é um direito ou um crime, e que confia à maioria a determinação do bem e do mal. Como se pode compreender que interesses tão nobres e elevados como seja o conceber e proteger uma vida, coexistam em nossas consciências com a eliminação dessa mesma vida, no ventre da mãe (é o acto contranatura por excelência). E perante estas realidades completamente antagónicas vamos, enquanto sociedade, vivendo as nossas vidas de forma desligada e anestesiada sem, aparentemente, grandes dramas interiores. Julián Marías (grande filósofo espanhol) afirmou que “a aceitação social do aborto foi, sem exceção, a coisa mais grave que aconteceu no século XX”. Também o Papa Francisco nos interpela de forma contundente: “Como é possível dizer-se que um acto que suprime uma vida inocente e indefesa no seu florescimento é um acto terapêutico, cívico ou simplesmente humano? Pergunto-vos: será justo eliminar uma vida humana para resolver um problema?” Quando a Madre Teresa de Calcutá foi à Suécia receber o Prémio Nobel da Paz disse, perante uma plateia envergonhada, que nunca poderia haver Paz enquanto o aborto fosse livre, promovido e aclamado. Claro que se distingue, sem hesitação, uma mulher que no seu estado de desespero, sob a pressão da sociedade, da família, dos pais, do marido (frequentemente, um cobarde que fugiu às suas responsabilidades), opta por recorrer ao aborto; ela deve ser acompanhada e apoiada antes e depois do mesmo. Já a situação, muito diferente, diz respeito à do activismo pró aborto, político, económico, demográfico, ideológico. E por mais que sejamos sensíveis às circunstâncias adversas, desesperantes de uma mulher que pretende abortar, o valor da vida humana deverá sempre prevalecer.
Já para os católicos mais distraídos, porventura flutuantes… recordar que “Antes que no seio fosses formado, eu já te conhecia; antes de teu nascimento, eu já te havia consagrado, e te havia designado profeta das nações.” (Jr 1,5). Recordar, ainda, que nós temos a Encarnação; Deus encarnou; o Filho de Deus fez-se embrião. Deus foi embrião no seio de Maria. Agora pensemos…