Em Portugal, como noutros países da Europa, parece que a questão da legalização e liberalização do aborto é assunto encerrado, como se fosse uma “conquista irreversível” que já não faz parte da agenda política e já nem sequer se discute. Ainda recentemente, Emmanuel Macron, na qualidade de presidente do Conselho da União Europeia, propôs que o “direito ao aborto” fosse incluído entre os direitos garantidos pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
Não é assim nos Estados Unidos, onde esta questão é das que hoje mais marca a agenda política, gerando tanta controvérsia como há cinquenta anos (ou mais ainda). A divulgação pública de um projeto (que parece refletir a posição da maioria dos juízes) de acórdão do Supremo Tribunal (com grave violação da obrigação de sigilo dos colaboradores deste) em que se defende a alteração da jurisprudência iniciada em 1973 pelo acórdão do caso Roe v. Wade , superando dessa forma obstáculos a regulações estaduais restritivas da prática do aborto, deu origem às mais incendiárias declarações de protesto, que em muitos casos assumiram características de violência contra edifícios e atos de culto católicos e contra centros de apoio à maternidade. É fundada a suspeita de que a divulgação desse projeto tenha sido motivada pela intenção de criar este clima de forte pressão sobre os juízes. Os que poderão votar em favor do projeto vêm as suas casas rodeadas de manifestantes e o autor do mesmo, Samuel Alito, mudou a sua habitação para um local secreto e seguro. Estas formas de pressão representam uma séria afronta à independência do poder judicial, pilar do Estado de Direito, que pode ser equiparada a outras formas de afronta ao Estado de Direito tão criticadas durante a presidência de Donald Trump.
Verdadeiramente, o tão criticado projeto não vem impor a proibição ou restrição do aborto. Vem permitir que tal possa resultar da votação maioritária dos representantes eleitos dos cidadãos de cada um dos Estados federados (em cujas competências cabem as matérias de direito penal). Pretende pôr termo ao que considera ter sido uma usurpação pelo poder judicial de uma prerrogativa dos representantes do povo por ele eleitos. Pretende que do processo democrático (que implica discussão pública de ideias, diálogo e tentativa de persuasão recíproca e, no final, votação) nãos sejam excluídos todos os cidadãos que não concordam com a orientação do acórdão Roe v. Wade (que consagra um regime de regulação do aborto de uma permissividade sem paralelo em muitos outros países, designadamente os europeus). Está em jogo, para a orientação do projeto de acórdão relatado pelo juiz Samuel Alito e agora divulgado, um princípio democrático que exige que uma matéria tão relevante e controversa como esta não seja decidida por um número restrito de juízes não eleitos.
O projeto de acórdão explica exaustivamente porque é que o acórdão do caso Roe v. Wade representa um abuso do poder judicial. Este afirma um direito ao aborto que não consta, de forma explicita ou implícita, da Constituição norte-americana, que não estava certamente na mente dos seus redatores e que não tinha quaisquer raízes na tradição legal norte-americana, onde, desde a independência e até então, vigoraram leis penalizadoras do aborto nos vários Estados federados.
Esse pretenso direito ao aborto é, no acórdão Roe v. Wade associado ao chamado direito de privacidade (“privacy”), ou de autonomia individual, mas o fundamento dessa associação é, no projeto relatado pelo juiz Samuel Alito, tido por assente em premissas muito fracas. Na verdade, em nome dessa autonomia é completamente ignorado o valor da vida do embrião ou feto, como se estes fossem parte do corpo da mulher e não é estranho que voltem a ouvir-se, em favor do acórdão Roe v, Wade, slogans do tipo “my body, my choice”. Ora, este pressuposto não tem qualquer base científica (esse acórdão, ao abordar tal questão diz apenas que ela não é consensual, evocando, entre outras, a tese aristotélica da animação mediata do feto, bem anterior aos atuais conhecimentos de genética e embriologia). De um modo geral, a legislação e a jurisprudência de outros países não vai tão longe e prevê limitações ao aborto (sobretudo, quanto aos prazos) justificadas por alguma (muito reduzida, porém) proteção da vida pré-natal. O Tribunal Constitucional português, designadamente, não tem excluído a vida pré-natal do âmbito de proteção constitucional da vida humana e tem considerado (de forma certamente discutível) que a legislação portuguesa sobre o aborto não deixa de a proteger.
Na linha da jurisprudência Roe v. Wade, não serão admissíveis restrições ao aborto antes da fase da viabilidade do feto, da sua capacidade de sobrevivência fora do ventre materno. Não seria admissível a lei do Estado do Missouri sobre que incidem o caso em discussão no Supremo Tribunal (o caso Dobbs v. Jackson Women´s Health Organization) e o projeto de acórdão agora divulgado, lei que proíbe o aborto (com algumas exceções) para além das quinze semanas de gravidez, uma lei menos restritiva do que a lei portuguesa e do que a generalidade das leis europeias. O fundamento racional e científico desse critério da viabilidade do feto também é contestado no projeto de acórdão relatado pelo juiz Samuel Alito: essa viabilidade dependerá, por um lado, do estado da ciência (diferente hoje do que era em 1973) e, por outro lado, dos concretos meios hospitalares à disposição (um feto poderá ser viável num país rico e não o ser num país pobre).
A regra do respeito pelo precedente judicial (a “stare decisis”) não será, para a opinião do juiz Samuel Alito expressa no projeto de acórdão agora divulgado, impeditiva da alteração da jurisprudência iniciada com o acórdão do caso Roe v. Wade. Não se trata de uma regra absoluta que eterniza decisões erradas como a que está em causa. Nesse projeto são elencadas outras decisões do Supremo Tribunal hoje tidas por erradas que foram sendo superadas, como as que consagraram formas de segregação racial ou impediram a consagração de direitos laborais.
A possibilidade de alteração da jurisprudência do acórdão Roe v. Wade já vem sendo encarada desde há algum tempo. O Partido Democrático tem procurado consagrar na legislação federal essa jurisprudência. Não o tem conseguido devido à votação negativa no Senado por uma escassa margem. As opções legislativas dos vários Estados federados a este respeito dividem-se profundamente. Nalguns deles (24, entre eles Nova Iorque, Nova Jersey, Washington, Vermont, Oregon, Connecticut, Maryland e Colorado), de maioria democrata, estão em discussão, ou foram aprovadas, propostas que facilitam o aborto ainda mais, ampliando os prazos da sua possível prática (uma lei em discussão na Califórnia pode até ser interpretada, segundo os seus críticos, num sentido que permite alguma forma de infanticídio), garantido o seu financiamento público ou eliminando outras restrições. Noutros (26, entre eles, Oklahoma, Texas, Tennessee, Mississípi e Missouri), de maioria republicana, estão em discussão ou foram aprovadas propostas que restringem, em maior grau (como no caso de Oklahoma, onde se discute uma proposta de proibição quase total) ou menor, a prática legal do aborto, reduzindo prazos ou proibindo a discriminação do feto pela sua deficiência, sexo ou outra característica. No Texas, vigora já há algum tempo uma lei que proíbe o aborto a partir do momento em que bate o coração do embrião (a chamada “heartbeatlaw”), ou seja, depois de cerca de seis semanas de gravidez. Legisladores de outros Estados pretendem seguir esse exemplo. Pelo contrário, legisladores de outros Estados em que predominam políticas favoráveis ao aborto (“pro choice”) pretendem facilitar o acesso ao aborto de mulheres residentes nesses Estados onde ele é, ou poderá vir a ser, mais ou menos restringido (desse modo se nomeando a si próprios “sanctuary states”).
Grandes empresas, como a Amazon, anunciaram que pagarão às suas trabalhadoras as despesas de deslocação de Estados onde vigoraram leis proibitivas do aborto para outros onde vigoram leis permissivas. Bom seria que implementassem, antes, medidas de apoio à maternidade, num país onde elas escasseiam, onde escasseiam as licenças de maternidade e paternidade tão comuns nos países europeus.
Esta situação atual dos Estados Unidos suscita algumas observações e conclusões.
Quase cinquenta anos depois da liberalização do aborto, a opinião de muitos norte-americanos não se resignou a ela. Nos últimos anos até vêm ganhando mais força os seus opositores. Dizem as sondagens que a maioria, apesar de não aceitar a proibição total do aborto, aceita que a sua prática seja mais limitada do que o é atualmente e de que ela não seja financiada por fundos federais. Os resultados de uma sondagem (da agência Maristic Poll) publicados em janeiro deste ano revelam que 54% dos norte-americanos não aceitam o financiamento público do aborto, que 71% aceitam mais restrições à sua prática do que as que vigoram atualmente, que 17% defendem a reversão da jurisprudência Roe v. Wade no sentido da proibição do aborto, 44% defendem essa reversão no sentido da atribuição aos vários Estados da possibilidade de limitar ou não a sua prática e 36% não aceitam essa reversão num sentido de uma maior restrição da prática do aborto.
A clivagem entre partidários e adversários da legalização do aborto (os ”pro choice” e os “pro life”) em grande medida coincide com a clivagem política entre democratas e republicanos. Reagindo à possibilidade de reversão da jurisprudência Roe v, Wade, o Partido Democrático vem assumindo posições que muitos consideram extremistas numa linha de apoio ao aborto e que dele afastam muitos eleitores e militantes (católicos, designadamente) que com ele se identificam noutras questões, como as relativas à justiça social. Pode ver-se, a este respeito, ligando as causas da defesa da vida às da justiça social, o livro de Charles Camosy, Resisting Throwaway Culture – How a Consistent Life Ethic Can Unite a Fractured People, New City Press).
Se for alterada a jurisprudência do acórdão Roe v. Wade, as restrições legais ao aborto multiplicar-se-ão em vários Estados, com o que a sua prática se reduzirá, sendo salvas muitas vidas. Contra esta conclusão, há quem diga, porém, que os abortos não deixarão de ser praticados, pois as mulheres que os queiram praticar e residam num Estado que restrinja essa prática, pura e simplesmente, deslocar-se-ão para outros Estados, vizinhos ou não, que a facilitem (os tais “sanctuary states”).
A experiência da vigência lei do Texas contraria tal conclusão. Desde que essa lei entrou em vigor, o número de abortos aí praticados reduziu-se em 60%. Se consideramos que nesse mesmo período 41% dos centros de apoio à maternidade (que também viram incrementados os apoios públicos de que beneficiam) receberam mais pedidos de ajuda, não será difícil concluir que essa lei contribui para reduzir a prática do aborto e, desse modo, salvar vidas. Estes dados também coincidem com os de vários estudos que associam as restrições legais ao aborto nos vários Estados americanos, assim como a ausência do seu financiamento público, à diminuição da sua prática. No processo relativo ao caso Dobbs v. Jackson Women´s Health Organization, atualmente pendente no Supremo Tribunal, um estudo apresentado por um grupo de economistas partidários da manutenção da jurisprudência Roe v. Wade (intervindo na qualidade de “amicus curiae”) estima que a alteração desta jurisprudência, e a consequente entrada em vigor de leis restritivas, mesmo com a possibilidade de deslocação para outros Estados com leis permissivas, se traduzirá numa redução global de cerca de 14% de prática do aborto (ver www.lifenews, 22/11/2021) — o que, para eles será lamentável, como restrição de um suposto direito de auto-determinação, mas para outros será de aplaudir, porque são vidas humanas que se salvam.
A este respeito, penso que há que ter presente que a Lei nunca deixa de ter uma função pedagógica (ou anti-pedagógica) no plano da formação das consciências, para além das sanções que possa prever, ou da maior ou menor facilidade do seu incumprimento.
Esta panorâmica da situação atual dos Estados Unidos revela-nos que não há leis irreversíveis. Quem lutou contra a legalização do aborto não deve considerar que se trata de uma causa perdida e não deve desistir de o fazer no plano da política legislativa. De qualquer modo, nunca será essa a única frente dessa batalha. Mesmo quando parecem distantes as possibilidades de alterar as leis que facilitam o aborto (como sucede em Portugal), há outras frentes dessa batalha, como as da formação das consciências e do apoio às mulheres grávidas que experimentam dificuldades. O que não podemos, de qualquer modo, aceitar é a banalização do aborto, ou o assustador número que se estima em 42 milhões de abortos por ano em todo o mundo, número que ultrapassa, de longe, qualquer outra causa de morte (ver www.worldometers.info/abortions).