Depois de o PS ter estado dezassete anos sem apresentar na Assembleia da República qualquer iniciativa legislativa sobre a matéria, eis que, no passado dia 17 de Setembro, 28 deputados do PS apresentaram o Projeto de Lei n.º 264/XVI, diploma que “Procede à 3.ª Alteração à Lei n.º 16/2007, de 17 de abril alterando alguns dos requisitos para a realização da interrupção voluntária da gravidez não punível e densificando o regime de exercício do direito individual de objeção de consciência”.
A circunstância de, entre os seus primeiros subscritores, constarem, por esta ordem, os nomes de Pedro Nuno Santos, Alexandra Leitão, Isabel Moreira e Pedro Delgado Alves, mostra que este projecto de lei é da actual direcção do PS.
Como se sabe, a matéria da denominada “Interrupção da gravidez não punível” encontra-se regulada no art. 142º do Código Penal e na Lei nº 16/2007, de 17.04 (na redacção em vigor), lei que regula a “Interrupção voluntária da gravidez”.
Entre as várias alterações agora propostas pelo PS ao art. 142º do Código Penal e aos arts. 2º (“Consulta, informação e acompanhamento”) e 6º (“Objecção de consciência”) da Lei nº 16/2007, de 17.04, adiante analisadas, contam-se as seguintes:
- O aumento de 10 para as 12 semanas de gravidez do prazo de realização do aborto livre (não punível) por opção da mulher, situação prevista na al. e) do nº 1 do art. 142º;
- O aumento de 12 para 14 semanas do prazo de realização da “IGV” na situação prevista na al. b) do nº 1 do art. 142º;
- A eliminação do período de três dias de reflexão, no caso do aborto livre por opção da mulher, previsto na al. b) do nº 4 do art. 142º (e nas als. c) e d) do nº 2 e do nº 3 do art. 2º da Lei nº 16/2007);
- A eliminação da intervenção necessária de dois médicos diferentes, prevista no nº 2 do art. 142º;
- A eliminação da exigência de o número de semanas de gravidez ser comprovado ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com a legis artis, prevista no nº 9 do art. 142º;
- O alargamento das pessoas que podem prestar o consentimento à realização do aborto (ou IGV) por mulher grávida menor de 16 anos, para além do seu representante legal, previsto no nº 5 do art. 142º; e,
- A limitação do exercício do direito de objecção de consciência por parte dos médicos e demais profissionais de saúde previsto no art. 6º da Lei nº 16/2007.
Recorde-se que, durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2024, mais precisamente num almoço comício realizado em Leiria no dia 28.02.2024, Pedro Nuno Santos afirmou que “A AD quer referendar o aborto. Não podemos fazer de conta que isso não aconteceu. Fizemos avanços importantes, há assuntos que estão resolvidos em Portugal. Houve um referendo e o referendo foi vencido. Aquilo que vemos é uma AD a querer voltar para trás, ao tempo da prisão e da criminalização e do risco de vida para a mulher”.
Sem prejuízo de o secretário-geral do PS parecer desconhecer que, de acordo com o Código Penal, fora os casos de abortos não puníveis (vulgo “IGV”) previstos no art. 142º do Código Penal, o aborto constitui um crime contra a vida intra-uterina e que, nos termos previstos no nº 3 do art. 140º do Código Penal, “A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos”, afinal, pelos vistos, o assunto não estava resolvido.
Depois do referendo realizado em 1998, houve de facto um segundo referendo em 2007, no qual foi formulada a mesma pergunta já feita em 1998 (em conformidade, aliás, com o sugerido pelo PS no seu Projecto de Resolução n.º 148/X de 15.09.2006) – “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” -, mas, ao contrário do que havia sucedido em 1998, dessa vez o referendo obteve uma resposta afirmativa da maioria dos cidadãos que votaram.
Pelos vistos, o PS quer agora ignorar os resultados desse último referendo, alargando para as 12 semanas de gravidez a despenalização do aborto realizado por livre opção da mulher, sem consultar previamente a vontade popular e sem realizar um novo referendo.
Pode ser argumentado que o facto de o referendo realizado em 2007 (tal como o de 1998) não ter tido efeito vinculativo, por o número de votantes no mesmo não ter sido superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento, habilita legalmente a Assembleia da República a legislar em sentido não conforme com a pergunta referendada.
Em certa medida, é verdade. Do ponto de vista estritamente jurídico, a falta de eficácia vinculativa do referendo realizado em 2007 permite aos deputados alterarem, alargando, ou já agora encurtando, o prazo do aborto livre não punível.
Mas do ponto de vista político não permite. Ou, pelo menos, não deveria permitir.
Na realidade, apesar de os referendos realizados em 1998 e 2007 não terem tido eficácia jurídica vinculativa, os partidos políticos, nomeadamente o PS, reconheceram e aceitaram a sua eficácia política e auto-vincularam-se aos respectivos resultados, não legislando (a seguir a 1998) ou legislando (a seguir a 2007) em conformidade com os mesmos.
Tal o impunha e impõe a tão apregoada, mas nem sempre seguida, ética republicana, ética que reconhece que a actuação política num Estado de Direito está sujeita a obrigações e deveres que vão para além de uma mera e estrita aplicação da letra da lei.
Considero ser, por isso, ética e politicamente inaceitável que o PS venha agora propor o alargamento do prazo do aborto livre não punível sem antes ter proposto a realização de um referendo sobre a matéria.
Refira-se que tal matéria nem sequer constava do Programa Eleitoral do PS para as eleições legislativas de 2024. Com efeito, nesse Programa apenas foi dito que o Partido Socialista compromete-se a “Remover os obstáculos à implementação da lei da Interrupção Voluntária da Gravidez através, nomeadamente, da regulamentação clara do direito à objeção de consciência dos profissionais de saúde” (p. 108). Nada foi dito a respeito do prazo do aborto livre por opção da mulher.
Numa altura em que diariamente se lêem notícias sobre o encerramento de urgências de obstetrícia e ginecologia e se sabe das dificuldades sentidas por tantas mulheres que querem ter os seus filhos em segurança, o PS, em vez de propor medidas adequadas à correcção e mitigação de tais situações (muitas vezes dramáticas), assim assegurando os verdadeiros direitos reprodutivos das mulheres, quer alterar a lei por forma a facilitar e promover o recurso ao aborto não punível.
Atente-se que, no final da Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 264/XVI, o PS justifica o alargamento do prazo do aborto livre não punível alegando que “Finalmente, o prazo legal máximo de dez semanas para a realização da IVG em Portugal é o mais restritivo de toda a Europa, o que desconsidera as recomendações da Organização Mundial de Saúde. É também por causa deste limite raro, e historicamente traçado nos termos conhecidos, que há tantos relatos traumáticos em que exercer o direito a uma IVG é uma corrida contra o tempo, acabando muitas vezes por se verificar que não se consegue aceder à IVG dentro do período gestacional legal. (…)”.
Sem prejuízo de não ser verdade que o referido prazo seja o mais restritivo da Europa e de os dados públicos oficiais existentes contrariarem a alegação de que “exercer o direito a uma IVG é uma corrida contra o tempo, acabando muitas vezes por se verificar que não se consegue aceder à IVG dentro do período gestacional legal” – o que se tem mostrado ser uma verdadeira corrida contra o tempo é dar à luz no SNS -, já é verdade que a fixação do prazo de 10 semanas desconsidera as recomendações da OMS.
Só que o PS “esquece-se” de referir que a fixação do prazo agora proposto de 12 semanas, como aliás, a fixação de qualquer prazo, desconsidera do mesmo modo as recomendações da OMS, uma vez que esta recomenda que nas leis não seja fixado nenhum prazo de gestação para a realização do aborto …! Como recomenda a despenalização total do aborto …!
Com efeito, como tive oportunidade de referir em anterior artigo aqui publicado, intitulado “O aborto e a carta dos direitos fundamentais da UE”, em Março de 2022 a OMS publicou um documento intitulado “Diretriz sobre cuidados no aborto: Resumo”, no qual apresenta o conjunto completo de todas as recomendações e declarações de “melhores práticas” da OMS relacionadas com o aborto, em três áreas essenciais: legislação e política, serviços clínicos e prestação de serviços.
Entre as muitas recomendações da OMS, constam as seguintes: (i) recomenda a descriminalização total do aborto; (ii) desaconselha que as leis e outras regulamentações restrinjam o aborto por fundamentos, recomendando que o aborto esteja disponível a pedido da mulher, da rapariga ou “de outra pessoa grávida”; (iii) desaconselha que as leis e outras regulamentações proíbam o aborto com base nos limites da idade gestacional; (iv) desaconselha períodos de espera obrigatórios para o aborto; recomendando que o aborto esteja disponível a pedido da mulher, rapariga ou “outra pessoa grávida”, sem a autorização de qualquer outro indivíduo, organismo ou instituição; (v) desaconselha a utilização de ecografias como pré-requisito para a prestação de serviços de aborto; e (vi) recomenda que o acesso e a continuidade dos cuidados completos no aborto sejam protegidos contra barreiras criadas pela objecção de consciência.
Infelizmente, algumas dessas recomendações (as constantes dos pontos (iv) a (vi) supra) estão agora a ser seguidas e propostas pelo PS.
Mas ainda quanto ao alargamento do prazo para a realização do aborto não punível por livre opção da mulher, importa atentar em parte daquilo que foi dito no parecer da Ordem dos Médicos enviado à Assembleia da República em 16.11.2021, no âmbito da apreciação dos Projectos de Lei nºs 953/XIV e 954/XJV, que foram apresentados na XIV Legislatura, respectivamente pelas deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues:
- Parecer da direção do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia:
“A direção do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia considera que a o alargamento do prazo legal de acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG) proposto no Projeto de Lei é inadequado, na medida em que a interrupção da gravidez em idades gestacionais superiores à atualmente prevista na legislação é um procedimento com implicações e riscos, clínicos e de saúde pública, significativamente acrescidos, que põem em causa os princípios da beneficência e da justiça distributiva em saúde. (…)”;
- Parecer do CNEDM (Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas), que concluiu que os dois projectos de lei de alteração à Lei de 2007 eram contrários à legis artis:
“(…). Não há nenhum dado científico que permita definir marcos no desenvolvimento da vida humana in útero pois trata-se de um processo contínuo. Deste modo nenhum prazo pode ser validado cientificamente uma vez que o processo teve início na fecundação e não há nenhum marcador durante a gravidez que permita afirmar um antes e um depois.
Os dados científicos sobre a gravidez e a saúde da mulher grávida são claramente favoráveis a uma melhor saúde quanto menor for o tempo de gestação que termina abruptamente, pelo que a ciência médica deverá recomendar a terminação da gravidez o mais precocemente possível e contrariar o alargamento de prazos. A embriologia poderá fornecer dados sobre o impacto no feto dos prazos da terminação da gravidez. (…)”.
Em suma, a fixação do prazo de 12 semanas (i.e., três meses) corresponde a um puro arbítrio do legislador, que, além do mais, agrava as implicações e os riscos clínicos e de saúde para as mulheres que abortam, para além, obviamente, de poder aumentar o número de vidas humanas que são terminadas.
No que se refere às demais alterações propostas pelo PS, cumpre chamar a atenção para o seguinte:
(i) Quanto à eliminação do período de três dias de reflexão, no caso do aborto livre por opção da mulher – período esse considerado “paternalista” pelo PS -, decorre a mesma de o PS propor alterar, desde logo, a redacção da al. b) do nº 4 do art. 142º (para além da alteração das als. c) e d) do nº 2 e do nº 3 do art. 2º da Lei nº 16/2007).
Recorde-se que a redacção actual da al. b) do nº 4 do art. 142º, a respeito da forma de prestação do consentimento, é a seguinte: “No caso referido na alínea e) do n.º 1 [o consentimento é prestado], em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.”
Já a redacção agora proposta pelo PS para esta alínea é tão somente esta: “No caso referido na alínea e) do n.º 1, [o consentimento é prestado] em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção”.
Refira-se que, de acordo com os “Princípios gerais de Conduta previstos no art. 135º do Estatuto da Ordem dos Médicos (na redacção em vigor) “O médico deve exercer a sua profissão de acordo com a leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade” (nº 1), e “O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido” (nº 3).
Como é possível obter o consentimento livre e esclarecido da mulher que quer abortar sem antes lhe prestar, em consulta realizada para o efeito, toda a informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável?
Mas a respeito desta questão, cumpre voltar a citar o já citado Parecer do CNEDM (Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas) sobre a “Retirada do aconselhamento médico e do período de reflexão”:
“1. A retirada do aconselhamento médico e do período de reflexão é um claro retrocesso na perspetiva médica. Na prestação de atos médicos é necessário um consentimento dos doentes que assenta em 3 elementos fulcrais e interrelacionados: os doentes devem possuir a capacidade de tomar decisões sobre seus cuidados; a sua participação nessas decisões deve ser livre e voluntária; e devem receber informações adequadas e apropriadas.
- Toda a informação prestada pelos médicos pressupõe a compreensão das opções e a autonomia do utente para a tomada de decisão. A transmissão de informação sobre os atos, necessita de ser efetuada dentro do contexto do utente, na compreensão das suas necessidades e de modo individualizado. E como a informação não é unidirecional, o profissional de saúde tem de estar disponível para o diálogo e para o esclarecimento e deve fomentar a discussão como garantia de uma decisão pessoal, esclarecida.
- No caso específico em discussão o aconselhamento pré-aborto pode ser útil para esclarecer ou reforçar a compreensão dos riscos envolvidos no processo e para avaliar necessidades sociais, psicológicas e anti-concepcionais específicas. Não existindo argumentação científica para excluir este procedimento de aconselhamento para um ato irreversível com implicações médicas, não poderá ser especificamente atribuído a este, bem como ao período de reflexão/discussão com o médico, uma maleficência a eliminar. De facto, em pessoas mais vulneráveis, o aborto pode vir a ser um acontecimento de vida com consequências, e o estado emocional pode precipitar uma decisão errada do ponto de vista pessoal. Mesmo que se assuma a capacidade de decisão, o peso dela pode ser menor se houver aconselhamento profissional e um período de reflexão obrigatório.
- Por fim, esta proposta de retirada de esclarecimento viola claramente o que está estipulado no Código Deontológico (…).
- Assim, para o aborto a pedido da grávida deverá ser sempre efectuada um esclarecimento médico que permita um período de reflexão para a obtenção de decisão consciente, livre e esclarecida geradora de um consentimento informado numa decisão irreversível. (…)”.
(ii) Quanto à eliminação da necessária intervenção de dois médicos diferentes, decorre a mesma de o PS propor alterar a redacção do nº 2 do art. 142º (para além da revogação do seu nº 3).
Recorde-se que a redacção actual do nº 2 do art. 142º é seguinte: “A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada, sem prejuízo do disposto no número seguinte”. E que o actual nº 3 dispõe que “Na situação prevista na alínea e) do n.º 1, a certificação referida no número anterior circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas”.
Já a redacção agora proposta pelo PS para o nº 2 do art. 142º é tão somente esta: “A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, que comprova que a gravidez não excede as 12 semanas”, propondo o PS a revogação do actual nº 3.
Já agora é de perguntar: e a comprovação de que a gravidez não excede as 14, 16 ou 24 semanas (para efeitos do disposto em várias alíneas do nº 1), deixa de ter de ser feita??
(iii) Quanto à eliminação da exigência de o número de semanas de gravidez ser comprovado ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com a legis artis, prevista no actual no nº 9 do art. 142º, decorre a mesma de o PS não incluir este nº 9 na sua proposta de redacção (como não inclui o actual nº 8 do art. 142º).
(iv) Por último, mas talvez o mais relevante, é inadmissível a limitação pretendida pelo PS para o exercício do direito de objecção de consciência por parte dos médicos e demais profissionais de saúde, em função da nova redacção que propõe para o art. 6º da Lei nº 16/2007.
Actualmente, dispõe o art. 6º da Lei nº 16/2007 o seguinte:
“1 – É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à objecção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez.
2 – (Revogado.)
3 – Uma vez invocada a objecção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objector preste serviço.
4 – A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou ao director de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objector preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez.
5 – A declaração de objeção de consciência tem caráter reservado, é de natureza pessoal, e em caso algum pode ser objeto de registo ou publicação ou fundamento para qualquer decisão administrativa.”
Já a nova redacção proposta pelo PS é esta:
“1 – É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à objeção de consciência, sem que o exercício desse direito individual possa pôr em causa o direito à vida, à saúde e à liberdade das mulheres que decidem interromper a gravidez.
2 – Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objeção de consciência relativamente à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal.
3 – A objeção de consciência é uma decisão sempre individual do médico ou do profissional de saúde diretamente envolvido na realização da IVG.
4 – (anterior número 4).
5 – O acesso ao direito à interrupção voluntária da gravidez e à qualidade do serviço de saúde prestado não pode ser afetado pelo exercício individual do direito à objeção de consciência.
6 – Os serviços públicos organizam- de forma que se garanta a todo o tempo o número de profissionais de saúde necessários ao acesso efetivo e atempado à interrupção voluntária da gravidez ou quando tal seja impossível, a existência de resposta no próprio serviço com recurso a prestador externo.
7 – A objeção de consciência não inclui a recusa de assistência médica ou outra a mulheres antes ou depois de uma interrupção voluntária da gravidez.”
Ou seja, o exercício individual do direito à objecção de consciência é assegurado desde que … não ponha em causa a liberdade das mulheres que decidem abortar, não afecte o acesso ao aborto, nem a qualidade do serviço “de saúde” prestado, nem a organização e a resposta dos serviços públicos de saúde.
A quase totalidade da Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 264/XVI é dedicada pelo PS à tentativa, diga-se frustrada, de tentar justificar a imposição de limites ao exercício do direito de objecção de consciência, em particular dos médicos, constitucional (art. 41º da CRP) e legalmente (art. 138º do Estatuto da Ordem dos Médicos) consagrado e garantido.
Os médicos têm o direito de recusar, sem limitações, a prática de acto da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência e ofenda os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários.
Limitar o exercício do direito à objecção de consciência por parte dos médicos (e outros profissionais de saúde), para além de ser inconstitucional, é ética e deontologicamente inadmissível.
De acordo com o Código Deontológico da Ordem dos Médicos (art. 64º), “A interrupção do estado de gravidez, por decisão da mulher, pode ser proposta ao médico nos termos e prazos previstos na lei” (nº 1), mas “O médico decide sobre a proposta, de acordo com os seus valores profissionais e com a sua consciência” (nº 2).
Termino, citando, imagine-se, a anterior ministra da Saúde Marta Temido, em declarações proferidas na Assembleia da República no dia 10.05.2022:
“Acho que todos entendem que a circunstância de ser feita uma interrupção voluntária da gravidez para as mulheres que a fizeram, e há nesta casa de certeza quem a já tenha feito, que é algo que é profundamente penalizador sob o ponto de vista da saúde física e mental. E, portanto, não considerar esse aspecto é, no mínimo, hipocrisia”.
Os deputados socialistas que subscreveram este projecto de lei parecem não concordar. Para eles, “As mulheres, quando agendam uma IVG, sabem o que querem e por que o querem fazer”.
Até parece que é uma decisão fácil. Mas não é. Nem para a mulher que decide abortar, nem muito menos para a vida que é abortada.