Há algumas décadas, trabalhava eu no Ministério das Finanças na Praça do Comércio e todos os dias era invectivado na rua por um sujeito que propunha vender 10 pares de peúgas por 10 escudos (hoje 5 cêntimos). Fui-me esquivando, até que um dia perguntei ao sujeito como queria ele que eu comprasse a mercadoria por esse preço, se só pelo valor se via logo que se tratava de um produto falsificado. O sujeito ficou calado uns instantes até que, sentindo-se insultado por o acusar de contrafação, desata a correr atrás de mim e grita: Ó meu grande estúpido, não vês que isto é gamado? Para aquele “vendedor” só um idiota não perceberia que por detrás daquela pechincha que ele oferecia tinha de haver algo mais que uma simples contrafação. O meu comentário ofendeu a sua honra de ladrão, qualidade que eu teria de entender, devendo, isso sim, realizar um excelente negócio sem fazer perguntas parvas.
A propósito dos lesados do BES, nunca me esquecerei do sujeito informado e consciente que, em plena crise de desconfiança quanto ao papel comercial do BES em 2014, afirmou à reportagem de uma televisão — orgulhoso do seu sentido visionário — que acabava de levantar 200.000 Euros do BCP para comprar papel comercial do BES, porque o juro era muito melhor. Este aforrador, como muitos outros, acreditava ser um investidor sagaz, quando afinal a sua esperteza se limitava à inteligência de um jogador de casino, onde, aliás, a casa ganha sempre. Essa sagacidade presumida e alguma ganância conduziu ao enterro de muitas poupanças no BPP, no BPN e no BES. Com tanta avaliação de risco nunca perguntaram a si próprios, qual era a aura celestial, que permitia ao BPP, ao BPN e mais tarde ao BES pagar retornos nas poupanças depositadas que os outros concorrentes não conseguiam? Não sentiram sequer um cheirinho a vendedor de peúgas a 5 cêntimos? Ou a um esquema Ponzi? É certo que a maioria dos depositantes das instituições bancárias insolventes, que não estes sagazes investidores inteligentes, foram pura e simplesmente ludibriados pelos gerentes das agências do BES, BPN e BPP, a mando dos respectivos directores e administradores. Mas como distingui-los agora dos sagazes investidores de casino?
Artur Alves dos Reis, nascido em 1896, com apenas 27 anos, através de um inventivo esquema de encomenda de notas do Banco de Portugal à casa inglesa que as imprimia, conseguiu lesar o Estado Português num valor equivalente a 1% do PIB à época.
Quando em 1925 começaram a surgir rumores de notas falsas, os especialistas de contrafacção dos bancos não detectaram nenhuma nota que parecesse falsa. Porque de facto as notas não eram falsas. O que era falso era a encomenda. Apenas após aturadas investigações lá se descobriu a prova do delito, quando se encontrou uma nota de 500 escudos também verdadeira, mas com o mesmo nº de série de outra nota de igual valor, objecto de uma diferente encomenda ao impressor, essa sim do Estado Português. Estava indiciada a burla.
Entre a descoberta dos indícios e o julgamento de Alves dos Reis mediaram seis longos anos entre 1925 e 1930, tempo esse que o suspeito permaneceu em prisão preventiva até ao julgamento em 1930. Portanto, tratando-se de um caso menos complexo que actual processo BES, não se pode dizer que ter demorado 6 anos a instruir este último caso seja um tempo excessivo. O que é diferente é o tratamento dos arguidos e o tempo que vai mediar entre a acusação e o termo do julgamento nas várias instâncias.
Alves dos Reis passou 6 anos em prisão preventiva e cumpriu integralmente os anos de prisão a que foi condenado, tendo sido libertado em 1945.
Sendo um génio do crime, que montou toda esta operação altamente original e ousada com 25 anos de idade, outro remédio não teve, uma vez condenado, que cumprir a pena.
Ao invés de Alves dos Reis, Ricardo Salgado com 25 anos, provavelmente jogava ténis no Estoril e a sua veia artística para o “negocio” só lhe terá surgido perto dos 60 anos.
A serem provados os factos da acusação, enquanto Alves dos Reis lesou o pais em 1% do PIB, Ricardo Salgado terá conseguido a proeza de nos lesar em 5%.
Salgado não aguarda o julgamento na prisão como Alves dos Reis, mas na sua residência, da qual apesar de arrestada mantém o usufruto e será quanto muito julgado quando tiver perto de 80 anos. Se for condenado (pode claro ser absolvido) entre recursos até ao Tribunal Constitucional terá mais de 90 anos.
Restará sempre a esperança que Ricardo Salgado possua os mesmos genes de Fernando Pessa.