Estou — desculpem que vos diga! — farto dos discursos sobre a felicidade. Das  fotografias e dos relatos das redes sociais cuja legenda parece ser: “Já viu como eu sou, inacreditavelmente, feliz?…”. E um bocadinho farto, também, com a forma como, mesmo em relação aos nossos filhos, a legenda é: “Eu quero que ele seja feliz!…”. Como se o “só” fizesse da felicidade que se espera uma expectativa sem nada de exageros – modesta, até – e, sobretudo, ao alcance de todos, a que se chega sem grande trabalho. E farto, ainda, com o “direito à felicidade”, mesmo quando as pessoas que o reclamam pareçam dar-nos a entender que talvez não tenham nem história nem memória, para que reclamem um direito sem que enxerguem a sua própria responsabilidade de serem felizes e o trabalho que isso lhes exige. E — “topo de gama” do que mais me incomoda — estou farto da forma como se fala da felicidade. Como se o modo como somos felizes ou como desejamos a felicidade não comportasse as lágrimas, as dores e as infelicidades que todos temos de ter para aprendermos a ser felizes. Todos… menos as “pessoas felizes” das redes sociais, pelos vistos. Daquelas que fotografam a vida mas não a vivem. Das que têm os rostos sempre sorridentes. E das que, ao contrário de nós, parecem estar sempre do “lado certo” da vida!

Parecia haver, até há uma semana, uma espécie de “tirania da felicidade”. O que não deixa de ser estranho, até. Como é que, ao mesmo tempo que se fotografava tanto a “felicidade”, se falava tão pouco do amor, como se uma coisa sem a outra fossem possíveis, eu não entendo. Se passamos a vida a colar a felicidade a uma espécie de euforia infatigável, como é que podemos ser felizes e, ao mesmo tempo, “censurarmos” o amor? Mas numa semana o mundo mudou! E, de um dia para o outro, todos estamos (mais ou menos) intranquilos ou infelizes. E, do discurso sobre a felicidade, passámos a aceitar que o divórcio — a exemplo da febre, da tosse e da insuficiência respiratória — parece ser um sintoma, incontornável, do coronavírus. Daí que talvez esta seja uma boa oportunidade de procurarmos um sentido para o amor. Afinal, por causa das medidas de contenção, vamos todos acabar divorciados?

A propósito do amor, a mim parece-me importante repararmos que crescemos todos com “fórmulas” amorosas muito na primeira pessoa. Muito mais “eu” do que, propriamente, nós. Como, por exemplo, “prometo amar-te” ou “vou-te fazer feliz”. “Prometo amar-te” sempre pode ser remetido para aquela categoria de coisas acerca das quais todos reconhecemos que “o que conta é a intenção”. Mas não é assim. Entre o “prometo amar-te” e o amor de verdade há muitos equívocos aos quais se chama… amor. Sejam os das pessoas que reafirmam que se amam quando todos percebemos que não é assim. Sejam os das pessoas que recomendam o amor e, vai-se a ver, o melhor do amor ao próximo a que chegam é ao “ama-te a ti mesmo”. Ou os das pessoas que, só porque nunca degustaram o amor, “decretam” que ele é uma coisa de filmes; e nada mais.

Como se esse excesso de eu e os mal-entendidos sobre o amor já não chegassem, todos parecemos aceitar que, em relação ao amor, a “taxa de mortalidade” é assustadora. Aceitamos que, primeiro, nos apaixonamos; a seguir, namoramos; depois, convivemos; após isso, coabitamos; finalmente, nos aturamos; e, passo a passo, nos vamos tornando estranhos, pouco admiráveis e muito pouco amáveis uns para os outros. Por isso mesmo, falar do amor em “tempo de guerra” não deixa de ser, mais do nunca, urgente. Afinal, estando todos a viver um verdadeiro Big Brother, sentimo-nos hoje amados, como se vivêssemos a dois numa “célula da Resistência” diante da qual o dia depois de amanhã será uma celebração de liberdade — onde o amor tudo curará — ou, pelo contrário, contamos os dias para dar um salto até ao “confessionário” e trabalharmos para a “expulsão” de quem já terá sido “o nosso amor”?

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Para muitos de nós, o divórcio irá aumentar, sim. Porque há muitas pessoas que vivem em contraciclo uma com a outra, tentando desencontrar-se o mais possível. Porque há muitas pessoas que, chegadas ao verão, levam muitos amigos dos filhos para as férias para que os momentos a dois se reduzam ao mínimo. Ou quando (dramaticamente) escolhem as horas em que se vão deitar para que quando um dorme o outro vagueie pelas séries que entenda. Para estas pessoas (que, sobretudo, coabitam), a quarentena, está a obrigá-las a conviver e a trabalhar no mesmo lugar. E a serem pais e educadores no mesmo sítio em que convivem e onde trabalham. Na verdade, para muitas destas pessoas que estarão divorciadas “por dentro” há muito tempo, tanta infelicidade e tamanha dor tenderão a pôr verdade onde ela não existia. Porque a ameaça de morte que nos entrou pela casa dentro torna a esperança que a vida nos resolva por si as embrulhadas em que nos metemos tão pejada de dúvidas que se torna urgente aquilo que parecia poder esperar “a vida toda”. Porque uma convivência diária, em tempos de guerra e com tantas exigências sobre nós, torna claro e esclarecedor tudo aquilo que nos separa. E porque, de repente, se percebe que, se não podemos ser todos tão felizes como desejamos, entre sermos infelizes faltando ao respeito a tudo o que é verdade em nós ou assumirmos — agora, mais do que nunca! — que procuramos ser felizes sem prescindirmos do respeito por aquilo que sentimos, a escolha será clara.

Para muitas outras pessoas, tanto sofrimento e tantas exigências que chegaram com ele vai torná-las mais amáveis e mais admiráveis. Vai juntá-las; ainda mais. Vai realçar o amor “que tudo cura”.

Seja como for, para uns e para outros, hoje, não há como um qualquer “prometo amar-te” se transformar numa promessa vã. Nem como sermos só felizes “para a fotografia”. Nem como querermos fazer feliz quem não faça parte de nós. Hoje não há como sermos amáveis na primeira pessoa. Hoje, alegrem-se, a censura sobre o amor está a morrer. Entretanto, voltámos a ser pessoas. Com lágrimas, com dores e com infelicidades.