Tem-me custado muito assistir às reacções de regozijo de quem festeja a não eleição de Augusto Santos Silva. Acho despropositadas. Atenção, não tenho nada contra júbilo revanchista, eu próprio adoro chafurdar em schadenfreude e considero a pirraça uma tradição portuguesa que importa preservar. Juntamente com o abrandamento para apreciação de acidentes de trânsito, a partilha de vídeos com quedas e a derrota de clubes rivais em finais europeias, são substitutos de felicidade perfeitamente aceitáveis. São o Nescafé da alegria.
Agora, a pirraça tem de ser praticada correctamente. Para produzir efeito, o “nha nha nhanha!” só pode ser usado no seguimento de uma maçada substancial. Só quando há perda para o protagonista é que “bem feita!” pode ser considerada bem feita. Não é o caso de Santos Silva. Ter perdido eleição foi o melhor que lhe podia ter acontecido
É verdade que não foi eleito e também é verdade que perdeu o seu lugar para um deputado do Chega, justamente o partido com que Santos Silva se manteve engalfinhado durante os últimos 4 anos. Há toda uma aparência de karma, admito. Mas é uma ilusão. Um trompe l’oeil que só se aceita porque em Portugal há pouca cultura cinéfila. Especificamente, a cultura cinéfila dos filmes de série B americanos que abordam casos em que, por alguma razão, um polícia vai preso e é colocado numa penitenciária onde estão vários dos bandidos que ajudou a apanhar. A não ser que seja Sylvester Stallone, nunca corre muito bem para o polícia que, sem a protecção do distintivo, é alvo de represálias. Sobretudo no chuveiro.
Era o que aconteceria a Santos Silva, se tivesse sido eleito. Sem o refúgio da Presidência da Assembleia da República, Santos Silva ficaria indefeso no meio da bancada do PS. Como um polícia no pátio da prisão. A única diferença é que, em vez de bandidos a tentarem espetá-lo com uma faca contruída a partir de uma escova de dentes afiada, Santos Silva iria ter à perna 49 deputados do Chega doidos para retaliar os 4 anos de vexames. Ao menos na prisão leva uma chinada e passa uns tempos na enfermaria. No Parlamento não há descanso. Sempre que se levantasse para intervir, Santos Silva iria ser apupado. Aliás, sempre que se levantasse para ir à casa de banho, Santos Silva iria ser apupado. “Olha o careca mijão!”, diriam. São mesmo desagradáveis, os deputados do Chega. Santos Silva tentaria responder, mas seria mais interrompido que os últimos governos do PS. Depressa ia perceber que já não tinha poder nenhum e não valia a pena armar-se em PAR.
Santos Silva é sociólogo, mas às tantas até ele se ia fartar de ser o sujeito de uma experiência sociológica em que um homem de meia-idade é vítima de bullying do Mithá Ribeiro e da Rita Matias. Como ele diz, a não eleição pode ter sido uma derrota política e pessoal, mas é evidente que foi uma vitória social, na medida em que o poupa ao enxovalho público.
Augusto Santos Silva é que se ficou a rir. Safou-se da armadilha mesmo à justa. E teve uma sorte dupla. Não só evita as injúrias, como também fica com tempo para se dedicar à vida universitária. Nomeadamente à monografia (estou há anos à espera!) sobre o fenómeno da cegueira de grupo. É baseada no caso, de que foi testemunha participante, de José Sócrates. 700 páginas a descrever o fenómeno de pessoas inteligentes que não vêem que não só o rei vai nu, mas também, apesar de não ter bolsos, vai carregado de dinheiro. É costume serem obras académicas aborrecidas, mas esta lerei com interesse. Até porque não é maçuda. Como fala de muita massa, é massuda.
Durante anos, Santos Silva foi o maior e mais agressivo defensor de José Sócrates. Qualquer suspeita que aparecesse na comunicação social era olhada com desprezo e considerada uma “campanha negra”. Injustificadamente, sabe-se hoje. A comunicação social tinha razão, Santos Silva não. É possível que, agora que conseguiu falhar uma eleição que devia ser fácil, Santos Silva perceba finalmente o verdadeiro significado de “campanha negra”. É a que conduziu nestas legislativas.