“O mundo moderno começou no dia 29 de Maio de 1919” – escreve Paul Johnson no seu excelente A History of the Modern World – “quando fotografias dum eclipse solar, tiradas na Ilha do Príncipe e em Sobral no Brasil, vieram confirmar uma nova teoria do universo”. Naturalmente Johnson refere-se à Teoria da relatividade desenvolvida por Einstein. Johnson compara a importância da descoberta de que o espaço e o tempo são relativos com a inovação da perspectiva na arte que teria ocorrido mais ou menos 500 AC na Grécia. Johnson segue demonstrando que a ideia do relativo tocou e moldou todas as áreas do conhecimento humano, desde a literatura com A Procura do Tempo Perdido de Proust até à psicologia, onde Freud inventava um novo gnosticismo sexual. Fosse qual fosse a área do saber em que estivéssemos interessados a mensagem do eclipse solar era clara: Nada no mundo era o que parecia. Para Johnson este fenómeno foi responsável pela perda de influência das religiões tradicionais deixando um vazio moral imenso no mundo. O livro é apaixonante e merece leitura atenta.
É aqui que gostaria de introduzir o maior equívoco no debate sobre as eleições no Brasil. Existe um sentimento globalizado do que o Brasil está dando uma guinada conservadora, ou seja voltando ao ponto pré-relativista onde tudo era certo e ordenado. E, na verdade, há um discurso mais livre que faz uma ruptura com o passado recente do Brasil e que é francamente conservador. Discurso que estava amarrado em muitas gargantas por medo de ser rotulado de torturador e malvado e cruel. Mas, nada é o que parece. E o que é certo é que este discurso sem papas na língua deixa a intelligentsia e as universidades e parte dos media em pânico. Essa gente está toda à beira dum ataque de nervos desde o Brexit, e desde a subida do Trump ao poder, e agora com a real possibilidade do Bolsonaro ser eleito presidente no Brasil. É gente de esquerda que herdou uma moral moralizante e que encarnou o bem social e político durante décadas, mas que devido à sua inépcia assiste à sua auto-ruína. E agora está em pânico porque a ala conservadora da sociedade recuperou o fôlego e descobriu que é… pasme-se!… a maioria.
É esta desorientação da esquerda que leva a outro equívoco (porque nada é o que parece): A influência dos Evangélicos. Ora os Evangélicos não elegem sozinhos um presidente, mas eles aglutinam o núcleo mais conservador da sociedade e representam três coisas que produzem medo na esquerda instalada, agudizando a sua desorientação.
1. Conservadorismo
A visão de mundo dos Evangélicos no Brasil é conservadora na sua moral. Em termos de comportamento social e sexual há um endurecimento das posições. E quase que existe uma censura à moral dos outros. Tipo: “Eu vivo deste modo e esta á a forma correcta de qualquer pessoa viver”. Os gurus do comportamento moderno ficam assustados com esta postura quase puritana. Erro crasso. Nada é o que parece! Na realidade o que os Evangélicos brasileiros defendem são os valores da família que eles sentem estar ameaçados. O elemento do medo e da perseguição aos comportamentos desviantes é mais uma consequência do que um plano pré-estabelecido. Dito de outra forma parece-me que existe antes de mais uma reacção da esquerda fraturante e não um plano de agressão por parte dos movimentos conservadores. Estes apenas estão a recuperar o espaço vazio que o relativismo moral foi alargando até atingir dimensões dantescas.
2. Comunidade
A mentalidade de raiz protestante que desagua nas igrejas Evangélicas brasileiras enfatiza a responsabilidade individual e premeia o esforço. Tende a diminuir o peso do estado na vida da pessoa humana, e desconfia do assistencialismo ad eternum. O merecimento é essencial. No espaço dos Evangélicos Brasileiros o assistencialismo existe, mas dentro da Igreja. Aí qualquer pessoa que se entregue às mãos da Igreja pode ser cuidada e acarinhada. A valorização da pessoa dá-se pela dedicação à Igreja e isso gera uma ideia de cidadania que funciona dentro da comunidade espiritual. Na comunidade, o crente tem a resposta aos seus mais íntimos anseios e angústias. Ali há ordem. Ali reina a paz. A tranquilidade existe porque se existe em comunidade. Os testemunhos de vidas transformados são impressionantes. A coisa funciona. E traz paz. O alcoólico fica sóbrio. A empregada doméstica vira mulher de negócios. O drogado é curado… Naturalmente que há um preço a pagar: O dízimo. Mas os ricos gastam fortunas em terapeutas, compras e festas para impulsionar a sua autoestima. Dá tudo certo! E no final vai uma selfie para o Facebook e para o Instagram. Sim, porque o momento só tem certificação existencial se ficar registado nas redes sociais. Então, a comunidade Evangélica propicia a sociabilidade e o exercício da cidadania.
3. Carisma
Os Evangélicos brasileiros são cheios de carisma, no sentido original do termo. Têm dons, exercem poder. Bem sei que este dimensão é mística e de difícil análise. Mas os Evangélicos no Brasil convivem bem com um certo desapego ao teste da verdade. Na verdade, a verdade é algo que não os preocupa muito. Há mais uma preocupação utilitária do mundo espiritual. (Neste sentido e de forma curiosa é interessante notar a simbiose entre práticas Católicas e Espíritas, num sincretismo tropical altamente funcional.) Mas voltemos à vaca fria… O Evangélico Brasileiro típico dá a sua adesão tanto à Bíblia como ao Capital. As elites Evangélicas têm uma postura utilitária, onde Deus e mammom são parceiros. O importante é a bênção alcançada. É a vida melhorada. É a circunstância adversa transformada. Business as usual! A diferença é que agora descobriram que têm uma voz e essa voz faz-se ouvir em vários quadrantes e afirma alto e bom som que não querem ser reféns de minorias. Até porque são maioria – na medida em que representam ideias maioritárias na sociedade. E essa maioria quer ocupar o espaço vazio deixado pelo relativismo. Quer voltar às fotos do eclipse solar de Sobral no Ceára e afirmar que há coisas que não são relativas. É a volta dos Conservadores. Para eles o Bolso não é a Besta, é bestial. Para os outros… isso dá medo!
Nota: o termo “Evangélico” é usado no artigo para reflectir uma realidade exclusivamente Brasileira. É um termo geral que abriga as denominações de origem Protestante sem distinção técnica das suas regras de fé e de práctica.
Filipe Samuel Nunes é teólogo a viver no Brasil