O politicamente correcto é uma expressão muito usada nos dias de hoje. De repente tornou-se algo de que, ou se é a favor, ou veementemente contra. Contudo, num sentido mais abrangente, a expressão significa simplesmente que deveremos evitar formas de expressão ou atitudes que poderão ser tomadas como de exclusão, marginalização ou de insulto a grupos de pessoas socialmente desfavorecidas ou discriminadas.

Posto desta forma, a generalidade das pessoas tenderia a concordar com o espírito da conotação pretendida. Afinal, todos sabemos que a sociedade em que vivemos – como a maioria das sociedades – é hierárquica, e que o objectivo  principal de uma boa sociedade, pelo menos a meu ver, devia ser que as pessoas mais competentes, independentemente do género, raça, etnia, ou orientação sexual, venham a ocupar a maioria dos cargos de chefia. Esta é a verdadeira essência de um sistema meritocrático.

Ambos os extremos do espectro político se apropriaram do debate à volta do politicamente correcto. Por um lado, temos a esquerda radical que o contesta afirmando que este é um conceito fictício inventado pela direita para que assim possa atacar mais “um monstro” de esquerda que na realidade não existe. Por outro, temos a direita que o encara como uma tentativa da esquerda para restringir a liberdade de expressão, para redefinir o discurso de forma ideológica e neo-Marxista e de reescrever a história denegrindo certos heróis do nosso passado comum.

Chegou o momento de chamarmos para a discussão um pouco de bom senso e de se ocupar o lugar político do centro. Talvez assim possamos vir a ser capazes de ter uma verdadeira discussão sobre o que ainda divide a esquerda e a direita, em vez de recorrermos ao insulto, “de-platforming”, “culture-cancelling” e assim por diante, que realmente não nos levam a lugar algum e apenas contribuem para polarizar ainda mais a sociedade. Continuando neste raciocínio, podemos afirmar que uma boa sociedade é aquela em que, nem a direita radical domina com as suas ideias de superioridade racial, nem a esquerda radical, que visa derrubar todo o sistema vigente em nome da igualdade de resultados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Poucos, de entre nós, estariam em desacordo com a premissa de que o mundo é um lugar muito melhor, desde que palavras como “nigger” foram removidas do léxico regular.

Uma maior inclusão e o desejo de liberdade que inspiraram os conflitos culturais dos anos 60 e 70 foram igualmente uma grande conquista. Os movimentos das liberdades civis e a da emancipação das mulheres ajudaram a integrar e dar voz a grupos tradicionalmente discriminados. Objetivos louváveis que ainda não foram plenamente atingidos.

Porém, como acontece com a maioria das revoluções sociais de grande mérito, foi tudo um pouco longe demais. Hoje, o politicamente correcto suprime a liberdade de opinião e, através da sua agenda de identidade, tenta impor aos outros uma visão do mundo específica.

Desafiar os pressupostos incorporados na nossa utilização comum da língua é uma coisa (aquilo que o PC começou por fazer bem); policiar a liberdade de expressão é um assunto completamente diferente. Esta visão do mundo da esquerda radical tem muito pouco a ver com o que o politicamente correcto tentou realizar pela primeira vez nos anos 60 e 70.

Afinal, o que correu mal com o politicamente correcto?

Basicamente, os dois extremos do espectro político apropriaram-se do conceito o que nos conduziu a toda uma panóplia de consequências indesejáveis e prejudiciais.

1 Silenciar quaisquer ideias nunca é um bom sistema, nem mesmo quando se tratam de “crenças e opiniões indesejadas”. A história já nos provou que algumas ideias, inicialmente consideradas indesejáveis, ​​acabaram por vir a revelar-se muito boas, e que outras necessitam de ser divulgadas publicamente e debatidas antes de serem lançadas no caixote do lixo da história. Os defensores do politicamente correcto, ao considerarem certos tópicos ou expressões “proscritos”, não fazem mais do que substituir preconceitos antigos por novos. As ideias, mesmo as más, ajudam-nos a aproximarmo-nos da verdade. Ninguém é infalível e seria sensato lembrarmo-nos disto. Ao proibir ideias com as quais não concordamos, privamo-nos todos de participar num debate rico e animado, de manter a mente aberta e de admitir a possibilidade de podermos mudar de ideia.

Bertrand Russell afirmou um dia: “Uma das coisas mais poderosas do nosso tempo é que aqueles que têm certezas absolutas são estúpidos, enquanto aqueles que possuem alguma imaginação e inteligência estão cheios de dúvidas e indecisões”. Na mouche.

Um bom exemplo deste em Portugal foi a directiva para a utilização de “linguagem não discriminatória” que alguns altos funcionários das Forças Armadas, tentaram fazer aprovar. Alguns dos exemplos eram absurdos, todavia outros eram correctos.

Dizer “não se porte como uma menina” é claramente discriminatório para as mulheres. Mas onde desenhar a linha de separação? Não tenho qualquer objeção em promover a consciência do preconceito instintivo, porém, organizações que penalizam os funcionários que não “dançam ao som da sua música” preocupam-me muito.

A directiva foi anulada. O Ministro da Defesa concluiu, acertadamente, que a mesma não estava em condições e precisava de ser amadurecida. Mas, pelo menos, este assunto encontra-se a ser debatido e percebe-se que há, agora, uma maior consciencialização para o problema. No fim de contas, a linguagem que usamos determina em grande medida a maneira como vemos o mundo. Mas há que ter cuidado com aqueles que decidem de que forma o devemos ver e compreender. Lembramo-nos de imediato do Estado Islâmico, de José Estaline, ou de Mao e afins.

Noutros locais o discurso político tornou-se extremo, de baixo nível e muitíssimo pessoal. Pensamentos e crenças, que deveriam ser publicamente veiculados, para que todos pudéssemos decidir sobre o que é verdadeiro e o que é bom e o que não o é, não são mencionados na esfera pública. Numa sondagem levada a cabo pelo Instituto CATO, 58% dos americanos questionados disseram que não podiam revelar aquilo em que acreditavam. São bastantes, se tivermos em conta que vivem na terra dos “livres e corajosos”.

2 O politicamente correcto não funciona. Não cumpre o seu objetivo final, o de promover a justiça social. O que nos deve importar é a forma como tratamos as pessoas e não o que lhes chamamos. O politicamente correcto não nos livra do racismo, do fanatismo, do bullying, ou da xenofobia. Simplesmente vota estes conceitos à clandestinidade (na melhor das hipóteses) ou fomenta uma reacção perigosa de direita. Tanto a esquerda radical quanto a direita radical seguem um discurso de “connosco ou contra nós”. Ambas as facções estão aparentemente convencidas da sua superioridade moral e do seu sentido de justiça. Uma das maiores falhas humanas “é preferir estar certo do que ser eficaz”.

3 O pensamento politicamente correcto conduz inevitavelmente a uma forma insana (leia-se infantil) de ver o mundo. O senso comum e o discurso político racional estão fora de moda. Cecil Rhodes e a sua, agora “infame”, estátua no frontispício do Oriel College, em Oxford, é um bom exemplo disso. Tendo tido o objetivo de promover o Império Britânico, um objetivo que, atualmente, muitos consideram anátema, Rhodes tornou-se objeto de ódio dos liberais. Há estudantes que exigem a remoção da sua estátua, alegando que se sentem “violentados” sempre que são forçados a passar por ela. Não conseguindo resistir à pressão, os altos dirigentes de Oriel acabaram por votar para a sua remoção.

A estátua está lá há algum tempo. Nunca ninguém se tinha queixado até agora. Como, aliás, ninguém até hoje, por princípio, recusou a prestigiada bolsa de estudos Rhodes, financiada por legado de Cecil Rhodes. Sintam-se livres para lhe chamar racista, para apregoar a sua lista de pecados a quem vos queira ouvir, para desviar o olhar, ou para, se realmente necessitarem, mostrar-lhe discretamente o dedo. Mas nunca para apelar a que se tente apagar ou reescrever a história. Será que também deveríamos parar de admirar Thomas Jefferson, um dos Pais Fundadores da Constituição Americana, por ser um proprietário de escravos do seu tempo? Não! Os dois praticaram o bem e o mal. Ambos eram homens do seu tempo. Julgá-los pelos valores de hoje é anacrónico e simplista. A vida é complicada e bem mais rica precisamente por o ser. O pensamento politicamente correcto obriga-nos a ver o mundo a preto e branco e infantiliza-nos a todos.

4 O “hate speech” (discurso de ódio) é hoje um elemento central da política, e alimenta gangues virtuais de “indignados” exigindo a retratação de uma declaração, um pedido de desculpas público e uma humilhação. Todos sabemos, ou deveríamos saber, a diferença entre ofensa e o que são verdadeiros fanatismo, racismo e xenofobia. Se ninguém tem o direito de ofender outro, a quem cabe a decisão de identificar o que é discurso ofensivo? Será um comediante ofensivo quando brinca sobre a história da Arca de Noé? Deveremos agora acabar com a sátira, com o humor e a ironia? Somos nós que acabamos por escolher se queremos ser ofendidos ou não. Além disso, temos sempre a liberdade de mudar de canal, se não gostarmos do que ouvimos, de abandonar a leitura de um livro, de publicar algo nas redes sociais ou de, simplesmente, ir embora.

Proteger os nossos filhos de toda e qualquer ofensa é derrotista. Há que ensiná-los a defender as suas opiniões utilizando um discurso racional, a converter corações e mentes, a exercitar o pensamento crítico, a concluir por si mesmos o que está certo e o que está errado. As universidades não deveriam ser espaços inócuos (“safe places”), mas, antes de tudo e principalmente, instituições de aprendizagem, de exploração e de experimentação.

Naturalmente, a maioria de nós gostaria de eliminar o racismo, a homofobia, a xenofobia, a transfobia, o bullying … enfim, a intolerância em todas as suas horrendas manifestações, mas o politicamente correcto não funciona! Se nos limitarmos a impor limites à linguagem que as pessoas devem usar, estaremos a falhar ao não ensinarmos uma nova maneira de pensar. Isto faz-me lembrar o adolescente a quem dissemos para limpar o quarto e que se limitou a atirar tudo para dentro do armário.

Como poderemos equilibrar a liberdade de expressão e os direitos dos grupos marginalizados e minoritários de terem igual expressão na sociedade? Exercitando o questionamento e expondo as pessoas a diferentes visões do que constitui uma vida boa e justa.  Precisamente o oposto de extinguir a liberdade de pensamento, de consciência, de expressão ou de envergonhar publicamente todos aqueles que ousam expressar a sua discordância. Acrescente-se uma pequena pitada de velho bom senso e um relacionamento com os outros imbuído de decência e cortesia, e poderemos ter aqui o início de um diálogo racional e proveitoso, que, finalmente, nos aproximará de uma sociedade mais equitativa.

Classificar atitudes aparentemente inofensivas como “comentário agressivo” ou “discurso de ódio” e participar em debates políticos com base em insultos e ofensas, aporta uma possibilidade muito real de levar as pessoas a outro extremo, ou, pior, a optar por não tomar parte, de todo, do discurso político e cívico.

Apenas os tolos, e os cegos para a história, dão por garantidas as suas liberdades. Há trezentos e cinquenta anos, Spinoza disse: “Qualquer homem poderá pensar no que e como quiser e dizer o que pensa”. E, no entanto, vivemos numa época em que nem todos homens (ou todas as mulheres) têm liberdade de pensar no que, e como querem, e muito menos de dizer o que pensam.

Chegou a hora de o centro político se manifestar. O diálogo aberto e o debate livre de consequências devem ser encorajados. Sejamos humildes e reconheçamos que podemos não ter todas as respostas. Preservemos as nossas faculdades críticas e pensemos por nós mesmos e não como os outros nos dizem para pensarmos.

Ainda acredito que o politicamente correcto no seu espírito inicial tem muito a contribuir para as nossas sociedades. Talvez quando os zelotas de ambos os lados depuserem armas e a poeira baixar, possamos ver o caminho à nossa frente e o que precisa de ser feito para dar poder àqueles que continuam a ser discriminados.

Versão em inglês