Há tempos discordei de uma posição tomada por Francisco Teixeira da Mota, cronista do «Público» que leio desde sempre, a propósito de despenalizar ou não a eutanásia. Aproveito hoje o seu artigo de 28 de Junho para ultrapassar aquela divergência e chamar a atenção para um tema que ele trata com a maior competência e clareza: a corrupção. Com efeito, é bom saber que o actual governo, embora conhecedor da existência desse cancro que rói a nossa sociedade e a própria democracia, foi aquele que menos caso fez do relatório do Conselho da Europa sobre a luta contra a corrupção.
Segundo Teixeira da Mota, Portugal só deu seguimento a uma das quinze recomendações do Grupo dos Estados contra a Corrupção-GRECO. Quanto às outras 14, cito: «Portugal só deu parcial andamento a três delas, ignorando totalmente as outras onze»! No dia seguinte, o mesmo jornal apressava-se a noticiar que o GRECO amaciara a sua apreciação mas voltava a dizer, um ano e meio depois de ter mandado o primeiro recado, que as «novas leis» prometidas pelo parlamento português ainda não tinham entrado em vigor nem haviam sido promulgadas. O costume!
Entretanto, a magistrada Maria José Morgado continua a lamentar os esquemas usados nos tribunais para protelar os processos indefinidamente e suspender sentenças, enquanto a embaixadora Ana Gomes denunciava o facto de o «hacker» português do futebol europeu, Rui Pinto, continuar preso sem ter sido ouvido acerca dos negócios do futebol nacional, ao contrário do que sucedeu em Espanha e França, onde os prevaricadores já foram castigados. Em Portugal, nada!
A corrupção não é um crime qualquer. Não é roubar num momento de necessidade. Não é matar por desespero. É minar a confiança entre as pessoas. Portugal é conhecido pelas baixíssimas taxas de confiança de uns nos outros e, concretamente, nos políticos e nos partidos. Eu próprio tenho medido repetidamente a estreita relação que há entre o factor da desconfiança inter-pessoal e a falta de mobilização cívica.
Mais: a falta de confiança está subjacente àquela «distância ao poder» já estudada à escala europeia e que continua a minar a sociedade portuguesa. Mais do que medo, é desconfiança do outro, como só se vê em países pouco desenvolvidos. Pior: já tive oportunidade de verificar que uma boa parte dos portugueses explicava as suas eventuais dificuldades sócio-económicas atribuindo-as à «corrupção» daqueles que teriam vencido na vida… A corrupção é algo tão tentador que até serve para explicar os êxitos que os outros tiveram mas eu não!
O colunista brasileiro Marco Aurélio Garcia escrevia há dias que, apesar de ter seguramente prevaricado, o juíz Sérgio Moro tinha o mérito de haver exposto à população a gigantesca corrupção das elites políticas e empresariais envolvidas no processo Lava-Jacto com o profundo efeito que isso teve na vida no Brasil. Resulta isto da Constituição brasileira de 1988 que confiou na capacidade dos órgãos de justiça para lidar com a corrupção, seja esta praticada por quem for. Nós não temos nada disso: depois de 48 anos de ditadura e 45 de democracia – quase um século! – estamos na mesma no que diz respeito à corrupção.
A este nível, a já de si delicada separação de poderes entre legislativo, judiciário e executivo não existe. E não estou a pensar na judicialização da vida corrente como sucede cada vez mais devido à complexidade social. Esse apagamento da separação entre poderes faz-me pensar, sim, num Vítor Constâncio – antigo secretário-geral do PS – ao refugiar-se atrás de leis que ninguém conhece e que a corporação dos juristas sabe virar no sentido que lhe convém…
A vida política está entrelaçada com a corrupção larvar que grassa no país, desde a endogamia no recrutamento ao amiguismo partidário, não mencionando a palavra tabú: negócios. Há todavia um caso de que as elites políticas e empresariais do país nunca se livrarão: é o chamado «Caso Marquês». O antigo primeiro-ministro socialista José Sócrates foi detido em 21 de Novembro de 2014 tendo ficado preso 288 dias. Desde então, já terão passado perto de 5 anos quando se realizarem as próximas eleições legislativas. Confirmando o que escrevi ao longo do tempo, não será daqui até lá que se fará justiça, se alguma vez isso acontecerá.
Previsivelmente, o primeiro-ministro e o Presidente da República actuais concordaram em afastar a anterior Procuradora-Geral e, no seguimento disso, escolher «outro juiz». Que eleições serão essas quando pesa uma suspeita desta dimensão sobre um antigo primeiro-ministro e vários políticos e empresários? Não terão sido alguns desses crimes praticados no exercício de funções governamentais? Noutro país, o caso teria sido julgado em devido tempo. Ou será que isso não convinha nem convirá nunca? Como votar nestas condições de conspiração geral em favor do silêncio?