Nunca se publicaram tantos livros sobre Auschwitz, nunca o projeto de uma União Europeia sob o signo da democracia esteve tão próximo de ruir.

Em Portugal, a audição parlamentar de Berardo forneceu à opinião pública mais uma prova da putrefação do sistema. Mas Berardo é apenas um dos predadores mais esdrúxulos da selva. O capitalismo selvagem — vil, desregulado e irrefreado — consentiu que banqueiros fidalgos e self-made men conluiados com advogados manhosos e «estadistas» farsantes capturassem a democracia. Sim, esta pestilência é vetusta e global, parece indomável e, pior, não foi mitigada pelo último crash do sistema capitalista. Prova cabal disso foi o triunfo de Donald Trump, magnata falido convertido em popstar de um reality show, personagem da estirpe de Berardo ainda que mais histriónica e poderosa.

Por cá, variantes da mesma peste infestaram o consulado de Cavaco e multiplicaram-se no consulado de Sócrates. Hoje, tornaram-se nos «pobres mais ricos de Portugal», vivem «remediados» nos seus resorts, a bradar inocência e a ostentar as suas comendas. Permanecem quase intocáveis e inimputáveis. Os processos judiciais em que só alguns estão indiciados serão longos, intricados, e vão decerto terminar com a inculpabilidade dos réus. Poucos serão presos. Até porque ficaram subitamente «pobres», nenhum poderá ressarcir o Estado e a banca dos crimes que cometeu e das dívidas que contraiu. Entretanto, o proletariado e as classes médias são chamadas a pagar a crise — porque não se batizam os impostos inflacionados e as novas taxas dos bancos com os nomes dos «pobres mais ricos»? «Taxa Berardo», «imposto Salgado», «tributo Duarte Lima», «encargo Oliveira e Costa», «coleta Vara», «contribuição Sócrates»…

A bem da nação, de uma nação alegadamente cumpridora de uma política financeira exemplar na Europa, os dois últimos Governos optaram por extorquir e proletarizar os funcionários públicos: professores, enfermeiros, polícias… Optaram por proletarizar e precarizar os jovens. Continuaram a desprezar as populações do interior. Optaram por fragilizar o SNS e a escola pública e por escarnecer os seus funcionários. Em nome de um Estado de direito, assente na legitimidade das leis concertadas por deputados, ministros, secretários de estado, banqueiros e advogados do chamado «arco da governação» (que inclui PS, PSD e CDS-PP), optaram por proteger e não ofender as parcerias público-privadas e os «pobres mais ricos».

Ao contrário do que apregoam os nacionalistas-populistas, o «povo» não é uma entidade coletiva perfeita e trabalhadora que diverge das «elites» culturais, sociais, profissionais e políticas egoístas, ociosas e corruptas. As «elites» provêm do «povo». Porém, os líderes nacionalistas-populistas, na maioria dos casos oriundos das ditas «elites» (Trump ou Bolsonaro são bons exemplos), são demagogos hábeis que, na atual conjuntura histórica, conseguem inculcar no espírito de demasiados cidadãos esta falácia ancestral. Deste modo, os cidadãos mais vulneráveis, desmemoriados e iletrados, endrominados pelo circo dos media, pelas redes sociais e por políticas educativas que desvalorizam a História e o conhecimento, criam empatia por estes líderes e pela sua visão maniqueísta do mundo.

A psicologia das massas, manipulada pelos novos cénicos «chefes providenciais», vai desfocando o seu olhar sobre a realidade, vai transfigurando a história em mito, vai acreditando num «admirável mundo novo», vai depreciando a democracia, vai diabolizando a União Europeia. O «povo», através do voto, vai tornando possível o regresso ao pesadelo de Auschwitz.

Professor de História em Oliveira do Hospital, mestre em História Económica e Social Contemporânea e doutorado em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra. Investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Autor dos livros O sol bailou ao meio-dia. A criação de Fátima (2015), Tomás da Fonseca. Missionário do povo (2016), Fátima. A (des)construção do mito (2017). 

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