1. Em 2017, o Ministério Público acusou o então vice-Presidente de Angola, Eng.º Manuel Vicente, entre outros, do crime de corrupção activa, por, em conluio com outras pessoas, ter actuado com vista a obter, da parte do então Procurador da República Orlando Figueira, despachos favoráveis em inquéritos criminais em que estaria a ser investigado, contra o recebimento de uma contrapartida pecuniária de mais de € 700.000,00 e ainda de outras vantagens, traduzidas na celebração futura de contratos de prestação de serviços a favor deste. Seguiu-se a pronúncia dos arguidos e a remessa dos autos para julgamento.
2. Acontece, porém, que o Eng.º Manuel Vicente nunca chegou a ser constituído arguido, uma vez que a pretensão do Ministério Público de o ouvir e constituir como arguido através de uma carta rogatória foi inviabilizada pela justiça angolana, atento o regime de imunidade de que, segundo a lei angolana, o então vice-Presidente de Angola gozava.
3. Assim sendo, é indiscutível que, à luz da lei portuguesa, o Eng.º Manuel Vicente não pode ser submetido ao julgamento que vai iniciar-se na próxima semana, uma vez que não foi constituído arguido. Tal circunstância provavelmente determinará a separação processual da sua situação, de forma a não prejudicar o início do julgamento em relação aos restantes arguidos. Por outro lado, não conseguindo notificar-se o Eng.º Manuel Vicente da acusação contra ele proferida, seguir-se-á o seu chamamento a juízo através de editais e, mantendo-se a sua não apresentação, a aplicação do regime da contumácia, o qual, em princípio, implicará a emissão de um mandado de detenção. Mas isso vai ainda naturalmente depender daquilo que for decidido pelo tribunal de julgamento, não sendo essa a matéria que é objecto desta minha reflexão.
4. No ano passado, o Governo de Angola apresentou uma nota verbal ao Governo português em que terá suscitado a questão da imunidade diplomática do seu então vice-Presidente, o que teve uma enorme repercussão junto da comunicação social portuguesa. Tive oportunidade de, no Observador (29.09.2017), defender a opinião de que o Eng.º Manuel Vicente não gozava, enquanto vice‑Presidente de Angola, de qualquer imunidade diplomática, a qual, sem margem para grande dúvida, mesmo que tivesse existido, teria cessado quando ele deixou de exercer o cargo, o que acontecera em Setembro do ano passado.
5. Entretanto, o Governo português solicitou ao Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da República um parecer acerca desse tema, o qual, segundo aquilo que a comunicação social tem divulgado, se terá pronunciado no sentido de que o Eng.º Manuel Vicente não gozaria de imunidade diplomática. O Governo ainda não publicou tal parecer (e não está obrigado a fazê-lo, embora se espere que o venha a fazer).
6. O assunto voltou à ribalta depois do Presidente de Angola, João Lourenço, ter criticado a circunstância do processo do Eng.º Manuel Vicente não ter sido remetido para julgamento em Angola, o que fez em termos particularmente duros e afirmando que essa circunstância seria susceptível de ter repercussão nas relações entre os dois países: “Lamentavelmente [Portugal] não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento (…). Nós não estamos a pedir que ele seja absolvido, que o processo seja arquivado, nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro.” (segundo o DN).
7. Na imprensa portuguesa, têm-se multiplicado as manifestações de alarme e as declarações de simpatia ou mesmo de concordância com a posição angolana. No dia 9 de Janeiro, no Expresso: “MP assume que não confia na Justiça angolana”, “Ministro Santos Silva muito preocupado com relações bilaterais”; no DN: “Angola poderá suspender presença na CPLP, alerta antigo chefe da diplomacia” [Martins da Cruz]; no Público: “Presidente angolano considerou uma ofensa a forma como Portugal tratou o caso de Manuel Vicente”; no i: “Tudo sobre o caso que abala as relações entre Portugal e Angola”. No dia 11 de Janeiro, no Público, Miguel Relvas diz: “A justiça em Angola funciona com normalidade. Este processo é da justiça angolana e é na justiça angolana que devia ser tratado”. No dia 13 de Janeiro, no Sol: “Relações com Angola estão mesmo por um fio”. No dia 18 de Janeiro, no Público, Marinho e Pinto diz: “Manuel Vicente não é um angolano qualquer”; no mesmo dia, na SIC Notícias, Jorge Coelho diz: “Nós temos também que respeitar os sistemas jurídicos dos outros países. (…) Mas quem sou eu para dizer que a justiça angolana – que é um país sobreano e independente – não é tão confiável como qualquer outro. (…) Portugal tem compromissos assinados do ponto de vista jurídico com Angola.”; e António Lobo Xavier diz: “É por essa razão, por Angola dizer que vai ter que aplicar a sua própria lei se o julgamento lá for feito, que o Ministério Público considera que não há garantias de boa administração da justiça. (…) Neste caso [Angola] tem razão. Tem razão. Para quem conhecer o processo é absolutamente incompreensível as interpretações que se fazem e os atropelos completamente desnecessários das condições normais de tratamento de um arguido seja ele angolano ou português”.
8. Contudo, o Presidente angolano não tem razão, a qual efectivamente assiste ao Ministério Público português. Salvo melhor opinião, claro.
9. A lei estabelece que a continuação de procedimento instaurado em Portugal por facto que constitua crime segundo o direito português pode ser delegada num Estado estrangeiro, o que depende, entre outras, das seguintes condições especiais: i) que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado; ii) que a delegação se justifique pelo interesse da boa administração da justiça.
10. No caso do Eng.º Manuel Vicente, o Ministério Público ponderou precisamente essa possibilidade, tendo a Procuradora-Geral da República, em Novembro de 2016, colocado ao Procurador-Geral da República de Angola, entre outras, as seguintes questões: i) A possibilidade de ser cumprida em Angola uma carta rogatória visando a constituição e inquirição do Eng.º Manuel Vicente como arguido; ii) A possibilidade do Estado de Angola aceitar a transmissão do procedimento penal em curso relativamente a essa pessoa.
11. O Procurador-Geral da República de Angola respondeu prontamente, afirmando, por um lado, não existir nenhuma probabilidade de ser cumprida uma carta rogatória nos termos acima referidos, mas ponderando, por outro, a possibilidade de aceitar que o procedimento penal relativo ao Eng.º Manuel Vicente prosseguisse a sua tramitação em Angola.
12. E foi assim que a Procuradoria-Geral da República equacionou, e bem, a transmissão do processo para Angola. Todavia, teve de ponderar também a circunstância de, em Agosto de 2016, ter sido publicada em Angola uma lei que amnistiou todos os crimes comuns puníveis com penas de prisão até 12 anos – como é o caso dos crimes imputados ao Eng. Manuel Vicente –, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015. Foi nesse contexto que a Procuradora-Geral da República colocou ao Procurador-Geral da República de Angola a questão de saber se os crimes referenciados, relativos a factos relativos a Portugal, estariam abrangidos pela aludida amnistia.
13. A resposta do Procurador-Geral da República foi rápida e chegou em Janeiro de 2017, sendo absolutamente inequívoca: referindo-se em concreto sobre se os factos imputados ao Eng.º Manuel Vicente estariam abrangidos pela amnistia em apreço, a resposta foi sim, estariam abrangidos pela amnistia.
14. Essa comunicação foi, aliás, acompanhada de um parecer emitido por um grupo de trabalho constituído no âmbito da Procuradoria-Geral da República de Angola, onde se sustentou que, se o facto objecto do procedimento penal, sendo crime em face da lei angolana, estivesse abrangido pela amnistia, o pedido de cooperação não seria admissível, por faltar a condição da sua punibilidade no direito angolano.
15. Em face deste expediente, a transmissão do processo para Angola ou não seria admitida ou, sendo-o, seria inapelável a aplicação da amnistia aos crimes imputados ao Eng.º Manuel Vicente. Ou seja, ao contrário do que afirma pretender o Presidente angolano, o Eng.º Manuel Vicente acabaria por não ser julgado em Angola. Julgo, pois, que o Ministério Público não tinha outra alternativa que não fosse a de não transmitir o processo para Angola. Por um lado, porque os factos concretos em apreço deixaram de constituir crime à luz da ordem jurídica angolana; por outro lado, porque é insustentável admitir que o interesse da boa administração da justiça fosse o de julgar em Portugal os alegados corruptores passivos portugueses e permitir que, em Angola, se arquivasse o processo quanto ao alegado corruptor activo angolano.
16. No ano passado, foi julgado em França o vice-Presidente da Guiné-Equatorial, Teodoro Obiang, filho do Presidente, que foi condenado a 3 anos de prisão (com pena suspensa) pela prática de branqueamento de capitais, desvio de fundos, abuso de confiança e corrupção. Terá igualmente sido objecto de apreensão o património por ele detido em França, com origem em fundos obtidos de forma ilícita. A defesa também alegou a sua imunidade e uma abusiva ingerência na vida de um Estado soberano, mas isso não impediu a justiça francesa de fazer o seu trabalho.
17. Eu não sei se o Eng.º Manuel Vicente é ou não culpado. Não tenho qualquer opinião sobre o assunto e, mesmo que a tivesse, não a exprimiria aqui. Também não tenho qualquer dúvida de que é da maior importância salvaguardar, até ao limite, as boas relações entre Portugal e Angola, a bem de ambos os povos. Porém, isso não pode nem deve ser feito a qualquer preço, sob pena de comprometermos a dignidade dos portugueses e dos angolanos.
18. Recuso-me a aceitar que possa ser do interesse de Portugal ou de Angola a aceitação de uma “chantagem” exercida apenas para salvaguarda do Eng.º Manuel Vicente (por mais poderoso ou por melhor pessoa que ele possa ser). Porque é disso que se trata. Há apenas um interessado na transmissão deste processo para Angola: o Eng.º Manuel Vicente.
19. Haveria, todavia, uma possibilidade dessa transmissão poder ocorrer: se o Eng.º Manuel Vicente renunciasse à amnistia e se tal renúncia fosse aceite pela justiça angolana. A faculdade de renunciar a uma amnistia não é uma questão líquida, mas tem sido admitida. A amnistia é uma graça que ninguém deve ser obrigado a aceitar. Só que essa declaração de renúncia nunca ocorreu (até hoje).
20. Não é, assim, verdade que Portugal tenha faltado ao respeito devido à justiça angolana. Pelo contrário, respeitou-a escrupulosamente, até com delicadeza.