Os próximos dias vão decidir a eleição, ou não, da nova Presidente da Comissão Europeia. Depois da fragilidade do PPE em sustentar o seu candidato, Manfred Weber, que se qualificara nas eleições de Maio como Spitzenkandidat mais votado, e do fracasso da fabricação à esquerda de uma geringonça europeia, surgiu a proposta que surpreendeu todos: a alemã Ursula von der Leyen, médica, com longa carreira política na CDU, actual ministra da Defesa na Alemanha, próxima e favorita de Angela Merkel, mulher nos 60 anos, casada, mãe de sete filhos.
Depois de tudo o que se passou neste processo e suas várias peripécias, pode comentar-se como no futebol: na União Europeia jogam 28 e, no fim, ganha a Alemanha. O facto é que este nome, tirado da cartola, permitiu fechar o arranjo político de distribuição dos principais lugares europeus, que se adivinhava problemático e estava a ser difícil. Embora com o som do suspiro, o alívio soou. E, à direita, o facto de Von der Leyen poder recuperar para o PPE a liderança da Comissão, que parecia já perdida, foi recebido com natural regozijo. Recebe ainda, pela história política pessoal, um pouco da aura europeia de Angela Merkel.
Eu não escapo a estes sentimentos, que se associam – confesso – ao facto de ser mulher (a primeira, e desde 1958) e uma mãe de sete filhos. Ainda que, aqui, apesar da simpatia, convenha refrear os ímpetos e olhar a sério à substância política, pois é disso que se trata – Rosa Luxemburgo também era uma mulher e Karl Marx também teve sete filhos.
A fragilidade e incerteza quanto à senhora Von der Leyen, face a qualquer dos Spitzenkandidaten das eleições europeias, é que, até por não ter carreira europeia anterior, não fazemos grande ideia do que pensa em questões fundamentais, nomeadamente quanto à construção europeia.
Em 2017, a seguir à apresentação do respectivo Livro Branco, onde se incluíam cinco cenários para o futuro da União Europeia e suas instituições (cenários “não exaustivos”, nem “exclusivos”), Jean Claude Juncker abriu o seu espírito e o coração. A pequena entrevista, por escrito, foi ao Expresso, a 4 de Março. Levava logo este título magnífico: “A Europa não pode ser construída contra as nações”. Seguindo para a entrevista, já nas respostas, afirmava o Presidente da Comissão Europeia: “O que posso dizer é que quando tinha 15 anos era federalista e agora não acredito nos Estados Unidos da Europa. A Europa não pode ser construída contra as nações e os Estados-membros.”
Considero esta entrevista um marco extraordinário, de elevadíssima importância. Fixem a data: 4 de Março de 2017. Nunca alguém na sua posição tinha sido tão claro e tão certo. É fundamental que não se volte para trás nestes pontos principais de consenso político: o federalismo não é o menu; não queremos os EUE – Estados Unidos da Europa; opomo-nos a tentativas de construir a Europa contra as nações e os Estados-membros.
O federalismo tem sido um dos maiores equívocos em que tem patinado a construção europeia. Compreendo a tentação, mas é manifesto o seu desajustamento. Está rodeado de indissociável ambiguidade, tendo provocado crescente desconfiança. Tem gerado inúmeros erros e mal-entendidos e criado receios e conflitos desnecessários e muito nocivos. É um disparate desnecessário. E muito perigoso.
Vem, para mais, embrulhado num mito: “A Europa é como a bicicleta; se pára, cai.” O mito da bicicleta já cansa, impulsionando sempre a pedalar, a pedalar, a pedalar, sem amadurecer e consolidar aquilo que temos. Penso há muito que já era tempo de a Europa encostar a bicicleta de vez e passar a andar a pé, para prestar atenção à realidade por onde anda e avaliar bem o terreno que pisa. Esse horizonte de Estados Unidos da Europa para onde rolaríamos numa imparável bicicleta é um horizonte que a maioria não quer e que assusta.
Importa ser claro: o federalismo é um modelo de construção de um Estado. É talvez o modelo mais rico e mais perfeito para enquadrar Estados de grande extensão ou variedade. Mas é isso mesmo: o modelo de um Estado. Se a União Europeia não quer ser um Estado, se não quer ser o tal Super-Estado que tantas vezes repudiou, então o federalismo não serve como caminho, nem como ferramenta. Fala-se muito de soberania partilhada na UE. Mas, sem aprofundar o conceito, qual é a “soberania partilhada” do Texas, do Dakota do Sul, do Colorado, do Hawai e do Tennessee, por exemplo? Zero.
Se a União Europeia não está no patamar, nem na era da formação dos Estados nacionais, se é pós-nacional, se é outra realidade, diferente dos Estados e noutro patamar, se respeita por inteiro os Estados nacionais seus membros, então o federalismo não serve, o federalismo não presta. Pelo contrário: convocar o federalismo para uma equação a que não pertence de todo só pode provocar desconfiança, rejeição, conflitos. É o que tem provocado.
Olhando à história das crises europeias desde Maastricht, encontramos em todas elas um traço comum: os “avancismos” federalistas e a sua rejeição por muitos. O federalismo fez ampliar a desconfiança dos britânicos e é responsável pelo Brexit e pelos prejuízos e perigos que provoca quer ao Reino Unido, quer à UE. Provocou a crescente desvinculação da opinião pública italiana (um dos Estados fundadores de 1957), que, por ora, aterrou no “salvinismo”. Na Alemanha (outro dos Estados fundadores), gerou a emergência e o crescimento do AfD e desconfianças muito disseminadas. Provocou o chumbo da França e dos Países Baixos (mais dois dos “seis” fundadores de 1957) nos referendos ao Tratado Constitucional. E é o alimento principal de todos os anti-europeístas que vão crescendo em correntes radicais ou extremistas da direita e da esquerda em diversos países da União Europeia. Os europeus não querem os Estados Unidos da Europa, os europeus não querem os seus Estados nacionais dissolvidos nuns Estados Unidos da Europa, os europeus desconfiam do que os políticos europeus andam realmente a fazer e a engendrar – e manifestam-no cada vez mais.
Em muitas conversas políticas com alemães percebi que, em geral, lhes é muito difícil entender esta rejeição do federalismo. A Alemanha, vencida e destruída pela guerra, encontrou na República Federal o modelo para se reconstruir, erigir uma democracia sólida, estável e respeitada e assegurar a coesão dinâmica de um grande Estado multipolar, da Baviera ao Mar do Norte. Mais recentemente, experimentou e provou como a mesma República Federal foi o quadro com que conseguiu superar, com brilho e distinção, a exigente prova da reunificação, a seguir à queda do Muro de Berlim. Os alemães federalistas não vêem o federalismo como um estratagema de domínio, mas acreditam, genuinamente, que seria bom para a Europa e os seus membros tal como foi para eles. Falta-lhes compreender o mais simples e o fundamental. Na Alemanha, são todos alemães; na Europa, não somos. É a diferença.
A construção europeia deve seguir sem modelo prefixo, naquilo que chamo de “unionismo”, pois estamos desenhando o modelo à medida que caminhamos, ajustando a União às necessidades, conforme a vontade livre dos seus cidadãos e dos seus Estados. Como disse Delors, é uma OPNI: uma organização política não-identificada.
As arremetidas rumo a um Estado federal europeu já provocaram demasiadas dissensões e crises. Já era tempo de a quimera federal ser posta de parte e abandonada por todos. Não acrescenta nada, antes diminui. Não congrega, antes parte. Não reúne, antes afasta. Mesmo os Estados Unidos da América, que muitos convocam como referência e o invejado paradigma, só firmaram a federação através de uma violenta guerra civil, que teve a questão da escravatura como detonador. Por outro lado, nos EUA, eram todos americanos, imigrantes colonos europeus, pois os índios não foram chamados para a construção. Nos EUE, todos povos diferentes, os índios somos nós.
Agora, após a escolha do Conselho Europeu de Ursula von der Leyen para candidata a Presidente da Comissão, a curiosidade aumentou quanto ao seu pensamento europeu. Lê-se nesta notícia do The Guardian, em Dezembro de 2013: “A nomeação de Von der Leyen [para ministra alemã da Defesa] envia um sinal positivo para uma maior integração das forças armadas europeias. Em uma entrevista da Spiegel em 2011, ela disse: “Meu objetivo é uns estados unidos da Europa, seguindo as linhas dos estados federais da Suíça, Alemanha ou EUA”. A criação de um exército europeu seria a conclusão lógica de tal visão.”
Esta notícia é muito inquietante. Estados Unidos da Europa? Exército Europeu?
A preocupação é tanto mais justificada, se tivermos presente o método que a maioria dos dirigentes têm seguido, repetidamente, a nível europeu, para avançar processos ou medidas que sabem ser muito controversas ou merecerem mesmo a rejeição da maioria. É o método do segredo e da mentira, numa linguagem mais crua e severa; ou da “ambiguidade construtiva”, como ouvi a Romano Prodi, numa linguagem mais doce e suave.
Os duros problemas do euro com que nos confrontámos – e ainda aí estão – devem-se a esse método obscuro: dizer uma coisa, enquanto se faz outra. A desconfiança generalizada que cresceu quanto à política europeia também tem aí boa parte da sua seiva. Os famosos “erros na construção do euro”, hoje largamente reconhecidos, não foram erros. Foram conscientes, mas escondidos ou falsamente desmentidos.
Ainda há relativamente pouco tempo, Macron e Merkel, o influente eixo franco-alemão, quiseram repor na agenda o propósito do Exército Europeu. A rejeição foi geral, incluindo de Portugal. Pelo menos, a nível vocal. Nos salões, nunca sabemos.
Em 17 de Setembro de 2012, foi assinado o Relatório Final do Grupo sobre o Futuro da Europa, integrado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de 11 Estados-membros: Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Alemanha, Luxemburgo, Países Baixos, Polónia, Portugal e Espanha. O ministro português era Paulo Portas, também ministro de Estado. Este Relatório foi o produto final de um processo de consultas políticas informais, ao lado das instituições, conduzido pelo ministro alemão dos Assuntos Externos, Guido Westerwelle, já falecido. Em matéria de Política Comum de Segurança e Defesa, os 11 ministros participantes emitiram, entre outros pontos, esta declaração: “Para tornar a União Europeia num actor real na cena global, acreditamos que a longo prazo isto poderia para alguns membros do Grupo envolver eventualmente um Exército Europeu.” Este Relatório de 2012, como pode consultar-se, contém muitas declarações avançadas em diferentes domínios da construção europeia, sendo a generalidade subscrita unanimemente por todos os ministros em nome dos respectivos Estados, incluindo o nosso país. Algumas, como é o caso da relativa ao Exército Europeu, indicam que nem todos estiveram de acordo – podemos, por isso, supor (e sobretudo desejar) que Portugal fosse dos que não concordaram, mas ficámos sem o saber com a clareza indispensável.
Estes documentos são de muita importância na construção europeia, fazendo parte do vasto arsenal de instrumentos variados de aproximação de posições. A política europeia caminha por várias escadinhas, não só pela escadaria principal – quando se chega a esta, já muito caminho foi feito por escadarias laterais em grupos diferenciados, consoante os temas e as oportunidades. Aquele grupo de 11 ministros trabalhou em 2011/12 sem secretismo. O Relatório final, por que só dei por acaso em 2015, foi objecto de divulgação pública logo em 2012 em vários países, assim como outros textos preparatórios. Em Portugal, foi escondido. Não sei se foi apresentado no Conselho de Ministros. Não sei se foi objecto de informação e apreciação nos órgãos restritos de direcção política dos dois partidos da coligação de governo (PSD e CDS), que são os dois membros portugueses do PPE. Sei que não foi distribuído aos deputados, nem aos Conselhos Nacionais dos dois partidos – penso sem hesitação que deveriam tê-lo sido. Admito que os eurodeputados – destes e dos outros partidos – possam ter conhecido logo o Relatório, por estarem mais próximos das reuniões europeias e por o documento ter sido logo público noutros Estados-membros e nas instituições da UE.
Não sei avaliar em que medida este Relatório subscrito pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal pode ter comprometido a nossa política externa e de defesa, em pontos sensíveis. Mas creio que foi um dos vários afluentes que se foram juntando para desaguar nas tentativas de Merkel e Macron para avançarem com a ideia do Exército Europeu. O Relatório de 2012 foi um dos documentos que promoveu o processo dos Spitzenkandidaten, bem afirmado no texto e logo estreado nas eleições europeias de 2014. E pode ter tido influência no pensamento de Ursula von der Leyen divulgado pelo The Guardian, aquando da sua nomeação, em 2013, para ministra da Defesa, colega de Guido Westerwelle, que coordenara o “grupo dos 11”.
O centro e a direita que não querem os Estados Unidos da Europa, nem o Exército Europeu, não podem deixar estes temas fundamentais continuarem a caminhar no engano e no segredo, como no Relatório de 2012. PSD e CDS têm o dever de perguntar à candidata a Presidente da Comissão o que pensa, hoje, sobre o futuro da Europa e em que direcção o pretende fazer avançar. Para o Exército Europeu? Para os Estados Unidos da Europa?
As perguntas dar-lhe-iam oportunidade de fazer como Juncker: “Sim, pensei assim, mas hoje já não acredito nisso”. Seria bom que também acrescentasse como o ainda Presidente: “A Europa não pode ser construída contra as nações e os Estados-membros.” Isto é que seria magnífico. Dar-nos-ia a indispensável base de confiança.
Mal vão os que, pelo silêncio, colaboram na ambiguidade. Nas matérias fundamentais, não pode haver dúvidas, nem incerteza, nem ambiguidades. Os últimos anos da União Europeia já serviram para provar que a manhosa “ambiguidade construtiva” é gravemente erosiva e destrutiva. Nenhum europeísta quer isso, nenhum europeísta pode ir por aí.