Defender o direito ao aborto é uma enormidade. Afirmá-lo como um direito humano é um salto no abismo, ofensa gravíssima à própria condição humana, ao mais profundo da consciência ética e dos valores jurídicos da Humanidade. Uma coisa é despenalizar o aborto em determinadas situações, por compaixão para com a mulher que o fez sob pressão do seu quadro pessoal. Outra coisa é considerar que existe o direito a abortar e, pior, sugerir que abortar pertence à classe mais alta dos direitos: os direitos humanos fundamentais.

No passado dia 19, Macron, para inaugurar o semestre da Presidência francesa da União Europeia, foi a Estrasburgo discursar ao Parlamento Europeu. Esperei ouvi-lo, por exemplo, sobre as interligações eléctricas transpirenaicas, essenciais ao mercado europeu de electricidade e tão importantes para nós. Em Julho de 2018, veio a Portugal reunir com Costa e Sanchez. Fez muitas promessas. Mais de três anos depois, quase nada aconteceu. Agora, na Presidência da UE, esqueceu o tema. Continuamos uma ilha eléctrica periférica.

Em contrapartida, completamente a despropósito, debitou uma enormidade. Fê-lo de forma especialmente brutal. Disse assim: “Neste espírito [do Estado de direito], gostaria que consolidássemos os nossos valores de europeus que fazem a nossa unidade, o nosso orgulho e a nossa força. Vinte anos após a proclamação da nossa Carta dos Direitos Fundamentais, que em particular consagrou a abolição da pena de morte em toda a União, gostaria que pudéssemos actualizar esta Carta, em particular para (…) o reconhecimento do direito ao aborto. Abramos este debate livremente com os nossos concidadãos de grande consciência europeia, para dar nova vida à nossa base de direitos que forja esta Europa forte nos seus valores, que é o único futuro do nosso projecto político comum.”

O Presidente de França revela a mais abissal insensibilidade ao saudar “a abolição da pena de morte” ao mesmo tempo que pede “o reconhecimento do direito ao aborto”. É como se o direito à vida fosse um cobertor curto, que se tapa de um lado, destapa do outro. Pior que tudo é que Macron o incluísse no Estado de direito (que atinge), nos valores europeus (que renega), nos 20 anos da Carta (que ofende), nas promessas de futuro (que compromete). Na verdade, pior era impossível. Deplorável!

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Aquando dos debates para a despenalização parcial do aborto, em certos casos e determinados prazos, o discurso dos defensores do “Sim” foi sempre “ninguém é a favor do aborto” e “somos todos contra o aborto”. Ouvimo-lo centos de vezes. Em Portugal e noutros países. Os mesmos asseguraram que “o aborto não deve ser usado como método contraceptivo”, o que, em si mesmo, é um absurdo: para ocorrer o aborto é porque a concepção aconteceu. Mas percebe-se a ideia: o aborto não deve ser usado como método de controlo da natalidade. Dizendo de outro modo: nesse pensamento, hoje dominante, o aborto é uma crise, não é um propósito. Sendo uma crise, não pode ser sempre enfrentado pela lei penal, mas por outras políticas públicas – defendem. Permanece objecto de preocupação, tanto pela saúde da mãe, como pela vida do filho. E, por isso, com propósito de redução e tendencial apagamento.

Saltar deste patamar para a consagração de um direito ao aborto e, mais, querer vê-lo alçado ao Olimpo dos direitos fundamentais é gritante desumanidade. Significaria consagrar o “direito” de eliminar o filho, nem sequer como conflito, ou crise, ou contingência, ou infelicidade, mas por vontade arbitrária. Seria catalogar como direito humano uma brutal desumanidade evidente.

Esta ideia anda aí, soprada por vozes extremistas e movimentos radicais. Só nestes se entende, com seu olhar turvo e coração de pedra. Atropela gravemente os fundamentos substanciais do Estado de direito e reintroduz na ordem jurídica o poder da violência brutal e da morte. Uma ignomínia dirigida contra inocentes, no tempo mais vulnerável da sua inocência.

Toda a gente sabe, ainda quando o esconde ou faz por esquecer, que há vida de cada ser humano antes de nascer. E que esta vida é absolutamente única e irrepetível. Da vida que é própria sabemo-lo desde o princípio dos tempos, pela experiência empírica das mães, que sempre sentiram nascer dentro de si, a pouco e pouco, os seus filhos no seu ventre, antes de nascerem para o mundo no fim da gestação e gravidez. Sabem-no também os pais que amam as mães e os filhos e partilham com ternura esse tempo raro dos primeiros meses dentro da barriga da mulher. Da absoluta singularidade desse novo ser humano – tão único que nunca houve, nem haverá outro igual –, temo-lo conhecido nas últimas décadas, por sucessivas descobertas e revelações da ciência e do progresso técnico. Só extremistas são capazes do negacionismo bestificado de negar a vida do filho antes de nascer e criar direito contra este ser humano.

Tenho dificuldade em seguir Macron. Este seu discurso de abertura da Presidência francesa é um momento definidor. Para mais, em ano de eleições presidenciais. Revendo o seu mandato e, agora, este momento europeu, fico a olhá-lo como um oportunista habilidoso, capaz de navegar com astúcia entre as contradições do sistema partidário francês em cacos, sem nunca realmente se comprometer. Tem, por vezes, grandes tiradas para provocar estalidos luminosos, mas nunca se lhe percebe realmente uma linha consistente. Não tenho a certeza de que acredite realmente nalguma coisa além de, provavelmente, em si mesmo. É fundamentalmente um equilibrista. Podia estar no poder 10 anos, que nunca deixaria marca para além de lá ter estado. Surpreende ver a França, que teve grandes Presidentes, política e intelectualmente inspiradores, estar agora entregue a um Macron. Um sinal da crise da sociedade francesa.

Muitos jornalistas referiram a menção ao “direito ao aborto” como uma resposta política do Presidente francês à recente eleição da nova Presidente do Parlamento Europeu, Roberta Matsola, opositora ao aborto, que presidia à sessão em Estrasburgo. Não sei se é assim, mas a frequência com que o comentário surgiu na imprensa sugere ter sido soprado como interpretação oficiosa. Se assim foi, Macron amarrotou um capítulo sério dos direitos fundamentais como bola de trapos de um jogo politiqueiro de ocasião. E isto confirma a sua vacuidade, o grau zero do seu pensamento, a nulidade da sua estatura. Uma tristeza.

Provavelmente não se deu conta de que ofendeu a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que abre com a consagração da dignidade do ser humano como inviolável, exigindo que seja respeitada e protegida. E segue com a proclamação universal do direito à vida, sem qualquer perímetro. Ao dar voz à ideia extremista de considerar o “direito ao aborto”, Macron afrontou os valores fundamentais em que assenta a Carta, excluindo da dignidade humana a criança antes de nascer e pondo fora do perímetro os nascituros.  Quando sabemos cada vez mais do que somos antes de nascermos, quando a medicina já age sobre crianças antes de nascer para lhes proteger a saúde e salvar a vida, quando, nos cuidados comuns de saúde materno-infantil, é cada vez mais claro o direito à saúde dos nascituros, eis que Macron mergulha nas trevas do passado para os excluir do perímetro do Estado de direito e lhes negar a dignidade humana.

Já tínhamos ouvido estas ideias radicais e extremistas. Os e as cavernícolas andam aí. Macron não inventou nada. A novidade é que nunca as tínhamos ouvido na Presidência da União Europeia, nem num seu órgão principal. Foi preciso Macron para o inaugurar.

É muito triste, neste semestre, olhar para a Presidência europeia e ver aí a linguagem e o gesto de um troglodita. Nunca tinha acontecido. Não apontem mais a Polónia ou a Hungria. Tenham pudor e vergonha. Se querem ver e condenar picos de extremismo e perigo sério de derrapagem, olhem para a Presidência francesa e para Macron. Foi daí que ficou anunciado o perigo.