Nas comemorações do Dia da Europa, inesperadamente subtraídas da atenção popular pelo aparato do Dia da Vitória na Rússia e este ano combinadas com o encerramento discreto da pomposa Conferência sobre o Futuro da Europa, só se ouviu o Presidente Macron. Macron, que se apresenta sempre com a promessa implícita de fazer aquilo que se espera dele sem cair no conjunto de clichês que levam cidadãos honestos a desligar televisões e telemóveis com aborrecimento quando governantes dirigem comemorações públicas, tratou de cumprir: ofereceu um discurso ergonómico, sempre cauteloso o suficiente para não ser desconfortável, assegurando aos europeus que o quisessem ouvir que a União não está para acabar, que pode ser grande de novo se souber responder à crise do momento e até prosperar moralmente se estiver disposta a sacrifícios económicos, financeiros e hedonistas em geral.
Tudo muito francês, portanto. Mas o discurso de Macron perseverou até chegar ao que o distingue dos restantes dignitários que se juntaram em Estrasburgo (curiosamente, uma pequeníssima galeria de ilustres que incluía o Primeiro-Ministro António Costa, teste do algodão sobre o desinteresse nas comemorações e o vazio de propostas da Conferência), oferecendo um grande projeto: o Círculo de Amigos da União Europeia. Recordando uma proposta de confederação sugerida por François Mitterrand em 1989, o atual presidente francês explicou uma nova “organização”, territorialmente mais ambiciosa do que a União Europeia, destinada a reunir as nações europeias que pretendessem juntar “valores democráticos” a intenções de cooperação nas áreas da segurança, energia, investimentos, infra-estruturas e livre circulação de pessoas.
Este Círculo de Amigos, não obstante a referência circunstancial aos “valores democráticos”, parece uma cedência à tese do mundo por blocos após a invasão da Ucrânia e o corte de relações entre o Ocidente e a Rússia. Daqui em diante, argumenta o Presidente Macron, a União Europeia deveria passar a ser a base da Europa, não o seu destino. Na nova organização caberiam as nações que respeitassem a “verdadeira geografia” europeia, incluindo aqueles que quisessem aderir à União e aqueles que a tenham abandonado, numa formulação claramente destinada a acolher a Rússia (que também tinha um lugar na confederação de Mitterrand), o Reino Unido, os Balcãs Ocidentais e, porventura, também a Turquia.
É um bloco pouco ambicioso. Quase trinta e cinco anos depois de Mitterrand, percebe-se o espaço mental da Europa não se expandiu. E se a ideia de um bloco europeu é provavelmente necessária para evitar que a União Europeia fique condenada a um papel secundário no Ocidente liderado pelos Estados Unidos da América, imaginar que esse bloco, difícil de formar em qualquer circunstância, venha a assentar numa organização formal, multilateral e burocrática é essencialmente copiar tudo aquilo que não funciona na União Europeia e tentar aplicá-lo num contexto em que nenhum país no mundo parece ter grande vontade de apostar no multilateralismo.
Mas o grande drama da proposta, que é também a tragédia da mundividência que Macron tem defendido durante os seus mandatos presidenciais, é mesmo o foco geográfico. Um bloco que se venha a limitar ao continente europeu e não possa tão cedo integrar a Turquia ou a Rússia soa pragmático e humilde o suficiente para funcionar, mas é culturalmente (para não dizer historicamente) equivocado. O Círculo de Amigos da União Europeia não se limita aos Balcãs ou ao Reino Unido, que estão já razoavelmente integrados para quem está fora da União Europeia. Para importar, o círculo que interessa teria de incluir África, na maior extensão possível, pelo menos do Mediterrâneo aos PALOP, passando pelos territórios em que a França, para não ir mais longe, está já profundamente envolvida a nível militar, económico e até político.
Convencer os países africanos a aliar-se à Europa seria desafiante ao ponto de justificar um grande projeto. Implicaria superar guerras culturais, falta de visão estratégica de todas as partes e traumas profundos e não resolvidos que merecem atenção e cuidado. Expandir o espaço imediato da ação europeia para os países africanos implicaria aproveitar laços históricos e culturais, tirando vantagem da proximidade geográfica e complementaridade económica. Para alguém com o temperamento de Macron e a generalidade dos europeístas que o seguem, seria a maior oportunidade de deixar um legado que pudesse ser recordado como mais do que uma passagem obscura num discurso pouco ouvido. Para Portugal, que esteve representado na primeira fila do discurso, devia ser já a prioridade nas discussões dos próximos meses.