Há dias, na conferência de imprensa que antecedeu o Grande Prémio de Singapura, o tri-campeão mundial de Fórmula 1, Max Verstappen, disse que o seu carro “was fucked”, e a FIA (Federação Internacional do Automóvel) decidiu puni-lo por essas palavras, obrigando-o a realizar trabalho comunitário.
Ainda que seja o cúmulo da prepotência e do paternalismo, esta decisão a respeito do comportamento e da fraseologia dos actuais pilotos de competição não é algo que tenha caído agora dos céus aos trambolhões. Em 2023, por exemplo, os pilotos passaram a ter de pedir autorização à FIA para fazer declarações do foro pessoal ou qualquer comentário sobre temas políticos, religiosos e outros exteriores à sua actividade estritamente profissional e desportiva. Nessa ocasião, o heptacampeão mundial Lewis Hamilton, um piloto que tem tido, nestes anos mais recentes, um notório activismo político, veio reagir, ameaçando abandonar a actividade se tal regra fosse por diante: “Se não posso defender os direitos humanos” — disse — “prefiro não correr mais.” Mas a verdade é que continuou a correr e a participar num desporto — ou espectáculo, se se quiser — que nas últimas décadas se foi convertendo numa actividade cada vez mais artificial e artificiosa, plastificada, robotizada, excessivamente regulamentada, cheia de regrazinhas castradoras e idiotas.
Esse rumo espelha fielmente o rumo seguido pelas nossas sociedades ocidentais e se compararmos a actual Fórmula 1 com o que ela era há 50, 70 ou, até, 90 anos, quando ainda não se chamava Fórmula 1, mas sim Grand Prix, veremos o abismo que nos separa daquilo que fomos.
Antigamente as corridas eram diferentes porque o ambiente cultural e a massa humana de que eram feitas também o eram. Durante décadas muitos dos pilotos de corrida foram pessoas peculiares, que viviam intensamente e nem sempre de acordo com as regras, em boa medida porque eram pessoas que privavam semanalmente com a morte. Sim, houve um longuíssimo tempo em que ser corredor de automóveis era uma actividade muito perigosa. Os carros eram frágeis, não dispunham de estruturas deformáveis, nem se fabricavam, ainda, com materiais capazes de absorver o choque. Durante muitas décadas não houve coisas tão elementares como aros de protecção ou cintos de segurança. Para além disso, os carros pegavam facilmente fogo e vários foram os pilotos — Dick Seaman, Stuart Lewis-Evans, Lorenzo Bandini, etc. — que morreram queimados.
Nesses tempos em que lidavam de perto com a morte, brotava, de entre os pilotos, tudo aquilo que é humano, no bom e no mau sentido da palavra. Muitos deles eram personalidades que davam por si sós um romance ou um filme — e fizeram-se vários — porque se tratava de figuras coloridas, problemáticas, contraditórias, corajosas. Eram, aliás, assim desde que havia corridas. Antes de pilotar o seu Bugatti, Mademoiselle Hellé-Nice, por exemplo, foi acrobata, actriz de teatro, fez strip-tease e dançou em vários cabarets e salas de espectáculo (nomeadamente no Casino de Paris) sem nunca ter passado pela cabeça de ninguém bani-la dos circuitos por má conduta ou obrigá-la a fazer trabalho comunitário. Outro tanto se diga do grande campeão italiano Achille Varzi, que se apaixonou pela mulher de um colega de equipa e, através dela — e dessa paixão —, caiu nas drogas pesadas. Ou de Alfonso de Portago — que recentemente vimos, de relance, no filme Ferrari, de Michael Mann —, um membro da alta nobreza espanhola que levava uma muito badalada vida de playboy e que gostava de desafios no limite e à margem da lei (certa vez, para ganhar uma aposta, passou com um avião por baixo de uma ponte).
É claro que nem todos os corredores de antigamente eram dignos de admiração, e alguns não eram, sequer, personagens recomendáveis. Para além disso não se pode dizer que a maior parte deles fosse brilhante ou, sequer, interessante, e muitos tinham pouco ou nada para dizer sobre o mundo extra-circuitos e motores. De facto – descontados os inevitáveis playboys, como Johnny Servoz-Gavin, os mecânicos que ascendiam graças ao seu talento, como Hermann Lang ou Jack Brabham, e os ocasionais aristocratas, como Portago ou Wolfgang von Trips -, o grosso da coluna era gente comum e de cabeça relativamente oca que gostava de assumir riscos, de se pôr à prova e de viver fast and furious. Mas entre eles havia personalidades verdadeiramente lendárias pela coragem, tenacidade ou, até, pelo sentido de humor. Em 1969, após ter sofrido um grave acidente em Watkins Glen, no qual partiu ambas as pernas e podia ter morrido, Graham Hill, o bi-campeão do mundo, disse o seguinte, ainda na cama do hospital: “Por favor digam à minha mulher que nos próximos 15 dias não vou poder dançar”.
E havia, claro, figuras exemplares, verdadeiros modelos morais a seguir, mesmo numa actividade tão individualista e egoísta como eram e são as corridas em pista. William Grover-Williams, por exemplo, aderiu às Operações Especiais britânicas, quando a Segunda Guerra Mundial começou, e passou a actuar infiltrado na Resistência Francesa, acabando por ser preso. Tendo resistido à tortura sem denunciar ninguém, foi executado pelos alemães. Gunnar Nilsson, que sofria de cancro, abdicou de analgésicos potentes, nas últimas semanas de vida, de forma a permanecer lúcido e activo. O sofrimento das crianças cancerosas que ele via no hospital londrino onde se tratava, levara-o a criar a Gunnar Nilsson Cancer Foundation e, usando a notoriedade que tinha ganho na Fórmula 1, dedicou os últimos meses da sua vida a obter fundos e donativos que pudessem, através dessa fundação e do hospital, ser aplicados na investigação.
Mas heróicos ou não, recomendáveis ou não, com sentido de humor ou nem por isso, havia na Fórmula 1 gente que possuía dimensão e espessura humana, e que tinha capacidade para dizer na cara dos homens poderosos do seu tempo aquilo que pensavam, aceitavam ou rejeitavam. Tinham, uns mais, outros menos, pêlo na venta e voto na matéria. Ora, isso desapareceu do horizonte. O que agora há são simples funcionários de um negócio ou indústria, meros empregados de empresas patrocinadoras, ou de marcas de automóveis ou de federações. Nas últimas décadas, e salvo circunstâncias muitíssimo excepcionais, não morre ninguém nas pistas nem há ferimentos sérios, felizmente. Mas — digamos que é o reverso dessa medalha — há uma gama de pilotos mais mortos do que os seus antecessores que antes da década de 1990 perderam a vida ao volante.
No momento em que escrevo não sei se Max Verstappen irá cumprir o castigo que a FIA lhe impôs. Não sei se os outros pilotos se unirão em seu redor para impedir que o faça. Mas sei que se não o fizerem descerão mais um degrau na sua irrelevância, e equiparar-se-ão a mentecaptos que sabem guiar, meros macacos amestrados, sem liberdade de acção nem independência crítica.
E sei, também, que se o público aficionado aceitar pacificamente, acriticamente, os ditames das autoridades que gerem este desporto — e vários outros, já agora —, se engolir mais esta infantilização e pasteurização dos seus heróis, estará a contribuir para conferir a essas instâncias federativas um poder censório, despótico, abusivo, que é não só degradante como perigoso.
E sei, ainda, que a actual Fórmula 1 é uma representação, um condensado, da vida nas sociedades contemporâneas, regulamentadas em excesso, carregadas de tabus, cancelamentos e interditos, cheia de gente hiper-sensível que se incomoda com coisas de lana caprina, e saturada de punições tendentes a fazer de todos nós meninos e meninas exemplares. É um dos pináculos do politicamente correcto.
Se não nos virarmos contra esse estado de coisas, contra esta cultura do policiamento e da castração, se aceitarmos que na imprensa, no desporto, no debate público, na arte, na literatura, na política, haja instâncias que nos estipulem o que podemos ou não dizer, organismos que nos censurem e punam por palavras que dissermos, então pertenceremos todos, sem darmos por isso, ao Clube dos Pilotos Mortos.