Desde as respectivas transições para a democracia, tanto Espanha como Portugal mantiveram até recentemente uma tradição e prática democrática de ser o partido mais votado a constituir governo, mesmo em circunstâncias nas quais o partido vencedor das eleições não logrou obter uma maioria absoluta. Foi assim, por exemplo, com Felipe González em 1993 e com José María Aznar em 1996 em Espanha e com António Guterres em Portugal, que inclusivamente completou uma legislatura inteira (entre 1995 e 1999) na liderança do governo sem maioria absoluta.
Esta prática foi interrompida em 2015 com a sagacidade política de António Costa e a disponibilidade de comunistas e bloquistas a possibilitarem ao PS governar mesmo depois de ter perdido as eleições para Pedro Passos Coelho. Algo de similar se passou à direita nos Açores, na sequência das eleições regionais de 2020. Como salientei aqui, a quebra da tradição de ser o partido mais votado a governar pode ser vista como um alinhamento progressivo de Portugal (e também Espanha) no sentido do que é mais normal no contexto de democracias liberais com sistemas eleitorais proporcionais: é o bloco maioritário quem governa, sendo menos relevante qual o partido mais votado.
É uma lógica alternativa defensável e com total enquadramento constitucional mas, para funcionar de forma democraticamente saudável proporcionando a alternância, precisa de ter aplicação geral, tanto à esquerda como à direita. Ora, aquilo a que assistimos em boa parte do discurso político e mediático ibérico vai no sentido de a lógica de blocos só dever poder funcionar para a esquerda. Ou seja, tanto PS em Portugal como PSOE em Espanha podem governar com o apoio de quem quiserem (incluindo partidos de esquerda radical e extrema-esquerda), mas tanto PSD como PP devem estabelecer um “cordão sanitário” relativamente a partidos de direita radical e extrema-direita.
A tradição (abandonada) de ser o partido mais votado a constituir governo permitia limitar o acesso dos extremos a influenciar a governação. A lógica de blocos, mais conforme à natureza dos sistemas eleitorais proporcionais, faz cair essa limitação, ainda que se possa argumentar que gera (tanto à esquerda como à direita) pressões para que os extremos se moderem com vista, precisamente, a influenciar a governação quando integram o bloco maioritário. O problema é que se for aplicada uma lógica assimétrica de cordões sanitários as dificuldades para que o centro-direita aceda à governação aumentam exponencialmente, colocando em causa a desejável alternância democrática.
Como bem salienta João Miguel Tavares:
“Para afastar o Vox ou o Chega das imediações do poder, vale tudo. E quando perguntamos como é possível estabelecer cordões sanitários à volta da extrema-direita mas não da extrema-esquerda, argumentam que essa é uma falsa equivalência. A extrema-direita é extremamente má. A extrema-esquerda é talvez um pouco fogosa, mas essencialmente boazinha.”
Se por um lado é compreensível, em virtude da história recente e do contexto sociológico e mediático de ambos os países, a maior aversão existente nas sociedades portuguesa e espanhola à direita radical e à extrema-direita, a verdade é que a visão (comparativamente) benigna da esquerda radical e da extrema-esquerda tem muito pouca sustentação.
Como sustentar que é perfeitamente razoável e sustentável o PSOE negociar entendimentos com os descendentes políticos do Podemos e do Batasuna ao mesmo tempo que se afirma que qualquer entendimento do PP com o Vox seria inaceitável? Como exigir que o PSD exclua em absoluto qualquer possibilidade de negociação pós-eleitoral com o CH ao mesmo tempo que se governou (e, presumivelmente, se está na disposição de voltar a governar) com o apoio parlamentar de um partido que olha para Coreia do Norte e Cuba como democracias e culpa a NATO pela invasão russa da Ucrânia e de um outro que, além do seu notório radicalismo ideológico, integrou membros das FP-25 como candidatos nas suas listas?
Combinar a lógica de blocos com a exigência de aplicação assimétrica de cordões sanitários é uma receita para a perpetuação no poder dos socialistas: em nome da democracia, PS e PSOE governam quando ganham as eleições e governam também quando as perdem (se necessário com a esquerda radical, com a extrema-esquerda e até com herdeiros directos de organizações terroristas que assassinaram inocentes em plena democracia) porque qualquer forma de entendimento com a direita radical e a extrema-direita é inaceitável.
Como bem questionou Miguel Poiares Maduro:
“Os socialistas querem realmente afastar a extrema-direita do poder ou usá-la para se perpetuar no poder (mesmo correndo o risco de lhes abrir as portas do poder)? Cada vez parece mais ser a segunda hipótese.”
Uma rejeição consequente de radicalismos e extremismos implica que PS e PSOE a apliquem igualmente à esquerda e se disponibilizem para viabilizar governos minoritários de, respectivamente, PSD e PP quando estes vencerem as eleições. Enquanto tal não acontecer estamos no domínio da mais pura – e irresponsável – hipocrisia política.