O PS (o PS dos boatos sobre Sá Carneiro, o PS do livro censurado de Rui Mateus, o PS da Casa Pia, o PS das inúmeras habilidades do “eng.” Sócrates, o PS dos telefonemas irados ou doces aos directores de informação, o PS que manda na linha editorial dos jornais a ponto de os tornar irrelevantes ou extintos, o PS que deu à Lusa uma credibilidade idêntica à do saudoso “O Crime”, o PS que inventou a ERC, o PS dos resgates à banca e dos saques ao contribuinte, o PS das negociatas disfarçadas de “desígnios”, o PS sem vergonha da vergonha dos incêndios de 2017, o PS das austeridades viradas na retórica e agravadas na prática, o PS do blogue Câmara Corporativa, do sr. Abrantes e de incontáveis jagunços que saltitam nas “redes sociais” e nos espaços de “opinião pública”, o PS da propaganda descarada, o PS dos paquistaneses travestidos de militantes, o PS que branqueia o rosto do líder como branqueia cada embrulhada em que se mete, o PS das prosperidades que terminam em bancarrota, o PS dos srs. Centeno, Ferro e César, o PS que mais do que qualquer outro partido se confunde com o sinistro “aparelho de Estado”, o PS enfim que, há dias, criou a agência espacial portuguesa) quer acabar com as “fake news”.

Olha que bom. O PS, aliás, aproveitou uma deixa “externa”: o plano contra a “desinformação” aprovado pela Comissão Europeia em Dezembro. Lá fora e cá dentro, o objectivo é comum, leia-se proteger o cidadão, coitadinho, das falsidades difundidas por fontes duvidosas. No nosso caso particular, as fontes duvidosas são, escusado explicar, aquelas de que o PS duvida e que, em troca, duvidam do PS. Num mundo ideal, só haveria notícias verdadeiras, e por verdadeiras entenda-se aquelas que o PS autoriza e, de preferência, produz. Por azar, ainda não atingimos tamanha plenitude do Ser. Por sorte, já faltou mais. Esta semana, tivemos um vislumbre do que será a informação pertinente, justa, lúcida e escrupulosa do futuro. Falo, é evidente, da presença do dr. Costa no programa da dona Cristina.

Os cínicos que se dediquem a avaliar se o episódio é representativo da agonia dos órgãos de soberania, cujas figuras passeiam jovialmente pela “trash tv”, ou se traduz o estertor das televisões, que passaram a acolher qualquer pelintra em prol das audiências. Por mim, limito-me a proceder com sobriedade à descrição de tão relevante momento. Ou seja, a contar o que vi. E vi o seguinte.

Num cenário que imita uma casa, a casa de Liberace se este fosse pobre, a dona Cristina abre a porta ao dr. Costa e inaugura uma série de gritos que pelos vistos são permanentes. No meio da gritaria, captei a palavra “lindo!” e a frase “um espaço de comunicação que não é para toda a gente”. Entretanto, o dr. Costa já está sentado e a recordar um concurso de fantasias que venceu em criança. Provavelmente, acabou em segundo lugar e uniu-se ao terceiro classificado para fintar a votação. Depois, parte para divagações sortidas acerca da infância. Insiro um parêntesis para notar que o “português” do dr. Costa é apenas ocasionalmente perceptível e frequentemente sujeito a tradução: “pa” significa “para”, “sançal” significa “segurança social”, “sómairéquecebi” significa “só mais tarde é que percebi”, “grembombom” não sei o que é, etc. O importante é que, da juventude, ficou-lhe o gosto pela liberdade, proeza que induz sucessivos guinchos na dona Cristina, a qual, para aprimorar o glamour, insiste em rir com a boca escancarada. Nisto, irrompe em cena a mulher do dr. Costa, que ele abraça com as saudades de quem não a via há dois minutos.

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O tema da conversa segue para a cozinha. De seguida, seguem os intervenientes. A sra. Costa, Fernanda de sua graça, assegura que o marido cozinha muito bem (não duvido: é humanamente impossível ser-se incapaz em tudo) e tinha imensas namoradas (não comento). Nisto, empenhado em confirmar as alegações, o dr. Costa já desatou a namorar, perdão, a cozinhar uma cataplana de peixe e a sublinhar a importância de uma cozinha limpa. Quanto ao cozinheiro, tanto faz: o dr. Costa não lavou as mãos. Instada pela dona Cristina a aliviar-se de intimidades, Fernanda diz que “tudo é de imprevisto” (queria dizer “improviso”, mas dado o meu desconhecimento da língua em que ela comunica com o cônjuge, não julgarei o deslize com severidade). O dr. Costa continua a cortar hortaliças.

Acontece uma pausa para compromissos publicitários, onde se divulga um pedacinho do orçamento destinado a apoiar as crianças pobres intolerantes à lactose, esse drama social. Os Costas lembram que a filha também era intolerante a uma substância qualquer. A dona Cristina comove-se com “as coincidências da vida” e proporciona-nos assinalável berreiro. O dr. Costa não pára de fatiar hortaliças no instante em que, para surpresa geral com as coincidências da vida, entram na cozinha os seus filhos e uma moça que, sob o chinfrim da apresentadora, não identifiquei. Há uma sessão de perguntas e respostas, ilustradas com fotografias de família. A emoção é palpável. A dona Cristina informa que o dr. Costa gosta de ir à lavandaria. Ele confirma: gosta muito. De prémio, recebe um puzzle do programa da Cristina, que em atenção ao público-alvo tem três peças (brinco: tem 20).

De súbito, o registo muda. A dona Cristina, implacável, questiona o dr. Costa se isto (ser primeiro-ministro, não fazer cataplanas) é mesmo uma “missão” que ele quis para a sua vida “na tentativa de ajudar os outros”. Até o dr. Costa se sentiu atrapalhado com tamanha exibição de sabujice. A dona Cristina recusa abordar matérias polémicas (o défice “não interessa nada”), arriscando um saltinho a Pedrógão, a “mancha negra” do mandato do dr. Costa, uma maçada que lhe caiu em cima, quase como uma camisa que se descoseu na lavandaria. O dr. Costa admite que foi uma tragédia e que pensa todos os dias naquilo, e que os “sidãos” (cidadãos) foram generosos e que afinal – interrompe-se todo contente – o peixe disponível permite mesmo uma petiscada valente: a propósito, ele aprecia bastante raia. A dona Cristina teima: Pedrógão não está esquecido, pois não? O dr. Costa balbucia uma salganhada e termina a pedir vinho verde para o tempero. Ao largo, o resto dos Costas – esposa, crias e, vim a descobrir, nora – sorri.

No derradeiro acto, a dona Cristina remove “os xapatos” (ela diz assim) e, com berros dilacerantes, propõe a todos “xentarem-se” à mesa. Confrontado com a ausência de netos, o dr. Costa denuncia um dos grandes problemas da nossa “siedade” (sociedade), o tempo que as pessoas demoram a ter o primeiro filho – cerca de 9 meses, da última vez que vi.

A boa notícia é que ninguém provou a cataplana. A má é que semelhante mistela era a coisa menos “fake” desta história.