Estes temas já cansam e hesitei em escrever sobre eles. Mas nos últimos dias tenho lido e ouvido tal revoada de disparates que me pareceu importante começar pelos princípios.

O verdadeiro problema woke

Concordo com MEC: todos deveríamos ser a favor da igualdade de oportunidades, sobretudo se formos realmente liberais, de esquerda ou de direita. O racismo é um crime e uma estupidez. A diversidade é enriquecedora por várias razões, até económicas e estratégicas. Sim, estratégicas! Uma das causas bem documentadas de derrotas militares catastróficas é o fenómeno do group-think, do grupo homogéneo de compinchas todos partilhando as mesmas preferências e perceções erradas ou preconceitos arrogantes que levam, por exemplo, a subestimar o inimigo. É, como diz MEC, um erro primário misturar a rejeição da cartilha woke com a rejeição do combate ao racismo ou da promoção de maior equidade e inclusão. É um disparate em que caem cada vez mais pessoas, sobretudo na direita radical e na esquerda radical woke.

Qual é então o problema do wokismo e o que tem isto a ver com Boaventura Sousa Santos? O que melhor distingue o conceito de woke é uma total redefinição do racismo, nomeadamente como algo exclusivo e constitutivo do homem branco, exigindo permanente vigilância. Isto leva a uma postura que não é de inclusão e debate sobre questões sérias e complexas, mas de constante policiamento do pensamento. Claro, de preferência sobre a forma de autocensura e moralismo berrante, se não, através de apelos ao cancelamento ou ao despedimento por justa causa.

Ninguém que conheça a história pode negar que o racismo se caracterizou por ser uma prática institucionalizada e legalizada de discriminação que gerou injustiças e violências. Mas o que diferencia o wokismo do combate genérico ao racismo é defender que ele estrutura o Ocidente. E ver no racismo e imperialismo ocidentais, pois só reconhece esses, a causa e explicação dos males do Mundo. Quem negar esta versão obsessivamente eurocêntrica e maniqueísta da história – que priva de qualquer verdadeira autonomia grande parte da humanidade – é automaticamente denegrido como defensor de privilégios masculinos brancos. Vejam como tem sido tratado um dos pioneiros da história da escravatura.

O caso Boaventura

Não faço ideia se Boaventura Sousa Santos é culpado ou inocente das várias acusações de que é alvo, e que deverão ser devidamente investigadas. Sei que é um intelectual relevante de que li com interesse um ou dois dos seus primeiros ensaios. Há muito que deixou de me interessar. Semanas antes deste caso deixei claro que considerava a maior parte das suas interpretações de política internacional o mero recitar duma cartilha ideológica completamente previsível, sem valor analítico. Sistematicamente culpava os EUA de todos os males do Mundo, e a respeito da invasão russa da Ucrânia ficou próximo de uma variante da tese segundo a qual uma mulher agredida e violentada seria “culpada” disso pelo seu próprio comportamento “provocador” e “más companhias”. Não será, portanto, por causa destas acusações que irei agora ler em maior ou menor quantidade as suas análises de política internacional. E sim porque há muito que Boaventura propaga uma espécie de ideologia totalizante que se tornou numa moda universitária em parte da América Latina e do mundo anglo-saxónico. O que distingue uma coisa da outra? Uma ideologia totalitária é circular, não admite contraditório, é um sistema de crença fechado.

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Não há forma de provar que o wokismo está errado. Qualquer crítica de que seja alvo pode ser imediatamente desqualificada e denunciada como mais uma manifestação de eurocentrismo, imperialismo, racismo e neoliberalismo. Face a isto estão mesmo espantados que um dos profetas deste tipo de sistema de crença seja o centro de um culto da personalidade? Estranham mesmo que não tenha sido objeto do escrutínio que devia ser a essência da atividade científica? Admiram-se que venha alegar conspirações racistas e neoliberais? É suposto levarmos este estranhamento a sério? E o problema não é apenas uma pessoa ou a sua reação às críticas, o problema também é a ideologia woke. Abraçar uma cartilha ideológica totalizante que tudo explica de forma simples leva a parar de se pensar ou questionar. Não sei se isso levou a abusos neste caso concreto. Mas o que a história nos tem mostrado repetidamente é que isto abre, realmente, a porta a todo o tipo de abusos. Não basta apelar a que não se abuse de uma ideologia totalitária. É preciso perguntar porque é que desta vez seria diferente?

Não ao cancelamento

O mais caricato no presentismo woke é que parecem realmente acreditar que são mesmo os primeiros que se lembraram de – só – cancelar as más ideias e – só – em nome da melhor causa. Como se a pior repressão não evocasse sempre as melhores causas, foi assim da Inquisição aos Wahabitas, de Hitler e Estaline até Mao e Pinochet.

Estou com isto a defender que tudo se pode dizer? Claro que não. Mas os limites numa sociedade pluralista e verdadeiramente inclusiva devem ser muito amplos. Devem servir, precisamente, para impedir situações-limite que ponham em causa a segurança ou a dignidade das pessoas, sempre com garantias de um processo equitativo.

Neste momento estamos a assistir a apelos persistentes à censura, ao cancelamento sumário do humor! Uma intolerância ridícula presente em Portugal, contrariando os que dizem que por cá nada disto existe, que tem sido bem desmontada pelo Ricardo Araújo Pereira. Isto significa que hoje estamos em risco de ser, em certos aspetos, mais intolerantes do que na chamada idade das trevas medieval, que tolerava os bobos da corte.

Estou com isto a defender que os wokes devem deixar de defender aquilo em que acreditam, com essa etiqueta ou outra? Estou a defender que devem ser boicotados ou privados das suas colunas ou cátedras? Estou a defender que devem abdicar das remunerações capitalistas que, fortuitamente, possam receber de fontes euro-americanas? Claro que não. O que defendo é que não devem condicionar, ou censurar, ou sequer cancelar o debate. Também não devem pregar sem contraditório nos jornais ou mandar nas universidades sem controlo. Só assim poderemos evitar cultos da personalidade, excessivas concentrações de poder e promover real diversidade.