1. Quando perguntei a Miguel Albuquerque com que dinheiro contava pagar as douradas promessas feitas nas últimas quarenta e oito horas aos médicos e professores da Madeira se ganhasse as eleições de Setembro próximo, ouvi simplesmente “com o nosso” (sem que ele sequer pestanejasse).
Mangas de camisa, olhar azul claro e um cabelo mais decente que o costume, o líder do governo madeirense continua a não pestanejar: ”recuperámos as finanças, temos um superavit há três anos, baixámos os impostos, exportamos mais do que importamos”. Sub entendido, eu que não me aflija com o custo das promessas de melhores dias para ambas as classes profissionais: “a despesa está consolidada e devidamente enquadrada”.
A verdade porém é que o que me traz não é uma história madeirense mas uma esperança lisboeta. Ou seja, se hoje “desloquei” a Madeira de um lado para o outro do Atlântico e a trouxe até ao Continente foi por saber a que ponto é vital para António Costa e para os socialistas – os de cá e os de lá – a derrota do PSD de Albuquerque daqui a três meses. Vital e determinante. Costa quer poder dizer em Outubro que Portugal é dele, ilhas incluídas. Enquanto não calcar de vez Passos de Coelho aqui, e Albuquerque lá — como já ocorre nos Açores onde vigora um “sistema” socialista de liberdade de escolha muito sui generis para dizer o mínimo — António Costa não descansará. Nem olhará a meios (políticos, constitucionais, financeiros, humanos).
Olhando porém as coisas ao vivo e em directo como me aconteceu por estes dias na Madeira, o sonho socialista esmorece. E com a recente vitória do PSD nas eleiçĩoes europeias de Maio (PSD: 37,15%; PS: 25,8%), um dia o sonho pode virar um pesadelo: por qualquer razão cuja inexplicabilidade não escapou a nenhum observador político ou “civil”, Paulo Cafofo, ex-presidente da autarquia do Funchal que ganhou bem, onde cresceu politicamente e se fez gente, decidiu abandonar o cargo após a derrota, para “se dedicar inteiramente à campanha eleitoral”. Perdeu de uma asssentada palco e poder e Deus sabe quanto o primeiro faz falta e o segundo, ainda por cima institucional, só empurra para cima. Com a cedência gratuita e exclusiva da praça pelo adversário, Miguel Albuquerque, a falar sozinho, tem resposta para tudo e o seu lado guerrilheiro – que está sempre à mão para as grandes ocasiões e é afinal o que melhor o define — faz o resto.
É verdade que ainda é cedo e que os verões costumam ser portadores de surpresas. Como por exemplo a surpresa do cansaço, um fastio ancorado em décadas do mesmo poder a que as novas gerações, forjadas noutros parâmetros, métodos e valores, decidisse pôr um ponto final. O meu interlocutor nem se comove nem se demove: “claro que nenhum jovem votará com o passado na cabeça, mas quem duvida que valorizará o percurso político de duas gerações do PSD responsáveis pela extraordinária mudança aqui operada?” E logo surge o slogan de estimação: “só um destituído muda para pior “.
O “pior” chama-se Cafofo (um antigo professor de liceu apaixonado pela intervenção política e muito esperançadamente amado no lisboeta Largo do Rato) que estes dias se ocupava dos Estados Gerais do PS local. Partido que não lidera mas pelo qual concorre como candidato à chefia do Executivo, uma curiosidade placidamente aceite por uns e outros, também ela certamente à espera de melhores dias. Se os verões são sempre (melancolicamente) efémeros, os seus três meses podem porém custar politicamente a passar. E muito.
2. A verdade é que todos estas conjecturas, apostas e estados de alma foram expeditamente postas entre-parêntesis para celebrar o êxito (outro) do pintor Jorge Martins aqui na Madeira. Celebrar também aquilo que de algum modo foi o completar de uma história feliz: a primeiríssima vez que ele obteve um prémio de pintura, foi a Madeira que lho ofereceu, corria então o ano de 1967. “Eu tinha vinte e poucos anos, estava exilado em Paris e era um pelintra”. Mas o ex-pelintra de ontem e artista maior de hoje ainda guardam ambos, intacta, a lembrança emocionada dessa distinção, tanto mais que ela veio acompanhada pela aquisição do próprio quadro, eleito pelo júri do Prémio “Cidade do Funchal”. Conhecedor desta história, e grande apreciador de Martins, Francisco Clode, director do Património e Museus da Madeira, desafiou o pintor a expôr na Madeira as telas que ele havia visto em Lisboa, no Museu Arpad Szenes, há cerca de dois anos mas… os artistas não gostam de “remakes” estáticos: o lugar escolhido, a “Casa das Mudas” — casa de arte desenhada pelo arquitecto Paulo David e que ele quis debruçada sobre o mar — “puxou” pelo fôlego do artista e interagiu com a sua inspiração. Para as Mudas vieram também entre outras telas e desenhos, dez inéditos com cor e dez a preto e branco, que Jorge Martins nunca mostrara. Veio em suma mais arte, e mais vida vivida para as brancas salas de impressivo pé direito do que é hoje o “Mudas – Museu de Arte Contemporânea”. Uma “escolha muito pessoal e solitária” que “o belíssimo espaço e a existência de um catálogo quase lhe exigiam”. Uma história que tinha de ser contada.
E depois, não é verdade?, Jorge Martins tem um dom: interpela e é isso que de imediato acontece quando passamos aquelas largas portas, somos capturados, mas haverá privilégio maior do que ser-se aprisionado pelo traço de alguém que soube tocar-nos?
3. Já em Lisboa, quando ouvi dizer que alguma gente “do” teatro tinha semi-torcido o nariz à “Golpada” discordei de imediato do veredicto, embora reconhecendo como a peça pode porém ser tão, como dizer?, inesperada, no palco do Teatro Aberto… E como de certo modo essa “impressão” de descontinuidade pode ter criado reticências aos mais antigos, aos “dali”, aos mais afeiçoados a um circuito que sempre preferiu mais a qualidade que o estremeção da novidade, sem aviso prévio.
Sucede que esta “Golpada” não é senão justamente uma boa mistura entre uma novidade muito “fora da caixa” — desculpem a expressão, também não gosto dela – e a exigência, a solidez, o profissionalismo que são e fizeram a assinatura da “casa”. Foi o vento fresco que ali soprou com velocidade que me trouxe a estas linhas. A história ( escrita pela alemã Dea Loher) seria — e é – uma quase historieta não fora a extraordinária encenação de João Lourenço, manuseando um puzzle de muitas peças: uma vertiginosa articulação entre o verbo, falado e cantado, o jogo dos actores, os instrumentos musicais, o movimento, a cenografia, a ginástica , a coreografia e tudo isto feito com arte e cheio de engenho (e trouvailles várias). Por detrás da aparente convencionalidade ou possível trivialidade da história há aqui e ali o clarão da poesia, o murmúrio da solidão, um lampejo de esperança que subitamente envolvem os personagens com a cor da pungência mas encenar a pungência, dá-la a ver, torná-la carne e osso, não é para qualquer um.
Foi o que fez aqui João Lourenço. Com o risco e o talento inerentes.
PS: O verão é outra vida. Espero que o Atlântico me conceda essa graça. Boas Férias!