Portugal é um país de gente maioritariamente calorosa e solidária, trabalhadora e com reconhecidos dotes de adaptação a contextos difíceis. De um modo geral, somos um povo humilde, apesar de alguns incendiários das redes sociais dispararem intolerância como forma de vida. No passado já longínquo, marcámos a história pela ousadia, de que os descobridores foram principais protagonistas, mas há muito que perdemos o espírito de ambição. As nossas lutas mais recentes foram caseiras e pouco arrojadas. As tricas da Primeira República deixaram-nos vistas curtas e o Estado Novo marcou as nossas gentes com o culto do medo. Em nome de um povo que não quis desenvolver, a ditadura fechou o país ao mundo e tatuou-nos na pele o receio e o conformismo. O espírito das gerações seguintes melhorou, mas não mudou. Fizemos a revolução e conquistámos Abril, mas do que poderia ter sido muito mais que a afirmação da liberdade, saiu “apenas” a integração europeia. Entrou dinheiro, ficou o défice de educação e cultura e venceu o medo das grandes reformas que poderiam fazer de nós senhores do nosso próprio futuro. Faltou coragem para mudar mentalidades. Com honrosas excepções, enquanto o cidadão comum se contentava com centros comerciais e telemóveis, políticos, empresários e sindicatos nunca quiseram ver além do seu quintal. Vieram eurofutebol, troika e turistas, e ficámos conhecidos como os bons organizadores, os bons alunos e os bons anfitriões. Ou seja, bons para os outros. E para nós, o que somos?

Neste surto epidémico, perante a mais grave calamidade sanitária dos últimos cem anos e contra as expectativas de tantos que profetizavam a desgraça, controlámos os danos e, por essa Europa fora, há quem nos aponte como exemplo. Fiéis à nossa identidade e ajudados pelo medo, fomos cumpridores e trabalhadores. Aparentemente, sobrarão ventiladores e camas de hospital. Pela frente, surge agora a ameaça económica, cuja dimensão potencial em provações e miséria em muito superará a da pandemia. Enquanto cidadãos, estaremos devidamente sensibilizados? A julgar por muitas reacções ao anúncio do progressivo regresso à normalidade a partir de Maio, receio que não.

Inevitavelmente, a crise acentuará desigualdades. Haverá mais desemprego e muito mais pobreza. Que comportamentos adoptaremos enquanto sociedade solidária? Virão mais impostos. Devido a uma nova regulamentação de segurança, bens e serviços que se haviam tornado acessíveis, como festas, espectáculos e viagens de avião, aumentarão de preço e muitos perderão os seus momentos de lazer preferidos. Jantar fora socialmente passará a ser um pequeno luxo e um hábito ao alcance de poucos. A cultura viverá novos e perniciosos sacrifícios. Estaremos preparados para moderar seriamente o consumismo dos últimos anos, apesar das lições da troika?

A justificação mais sensata para a declaração do Estado de Emergência e para o confinamento foi a salvaguarda de serviços de saúde estruturadamente capazes de assistir um cidadão doente, evitando a sua saturação pelo pico de casos de infecção. Agora que há fortes razões para acreditar que esse horizonte de ruptura está afastado, a frente económica deve prevalecer tanto na mente do político como do cidadão comum. Enquanto povo, temos de romper o fado do conformismo. Sendo responsavelmente destemidos e mantendo a protecção dos mais idosos, poderemos minorar os efeitos da crise que nos espera. O regresso ao trabalho é o caminho. O primeiro passo é vencer o medo.

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