No dia 25 de Abril de 1974, eu tinha apenas 4 anos e vivia no Porto. Não guardo lembranças desse dia nem das emoções que a minha família sentiu. A memória mais antiga que, de algum modo, remete para a conquista da liberdade é a de assistir ao Festival da Canção de 1976, com Carlos do Carmo a cantar todas as canções concorrentes. E depois, nesse mesmo ano, já me lembro bem das primeiras eleições presidenciais. Recordo que a minha avó gostava do Otelo e o meu avô do Pinheiro de Azevedo, mas depois ganhou o Eanes. E ainda hoje tenho um jogo de tabuleiro que então jogava com a minha querida avó, no qual se representava a Assembleia da República e os seus partidos. Na família mais próxima, quase todos simpatizavam com partidos de esquerda. Apesar de serem tempos fracturantes, sempre vi nos meus familiares mais próximos uma razoável moderação. Os intolerantes eram os outros. Havia uma vizinha sacarneirista que, com desdém, tratava os comunistas por comunas. Nunca gostei da palavra. Marcou-me. Não é bonito rebaixar os outros apenas pelas suas ideias.

Os anos oitenta foram ainda conturbados. A política era um fascínio e uma alegria. Soares foi uma atracção. Recordo os tempos do Soares é Fixe com saudade. Como era difícil afirmar a preferência pelo candidato da esquerda! Só me lembro de mais outro miúdo da minha escola que ostentava o autocolante do sol amarelo. A direita mandava, mas o sonho realizou-se e Soares ganhou. Não foi fácil lidar com o desprezo de muitos daqueles que achavam que Freitas do Amaral só perdera, porque as pessoas eram estúpidas e, claro, os comunas tinham voltado a ser comunas. Por essa e outras razões, lá fui crescendo com simpatia pela esquerda moderada e uma das que mais me orgulhava era pertencer ao lado contrário ao dos intolerantes.

Contudo, se não nos fecharmos em torno das nossas ideias, cada dia que vivemos é um novo dia em que aprendemos. E assim, embora as vistas curtas de Cavaco e o seu papel decisivo na construção de um Portugal à sua imagem, mesquinho e desinteressante, me tenham mantido mais uns anos confinado no lado contrário ao dele, veio depois Sócrates para acabar de vez com as minhas já ténues ideias de acantonamento politico-partidário. Hoje, menos condicionado pela afectividade aos partidos (e, de certa forma, às próprias ideologias) e mais focado na obra, potencial e efectiva, de homens e mulheres movidos por boas ideias, consigo o distanciamento suficiente para admirar ou desconsiderar líderes políticos em função do seu papel num contexto específico, sem prejuízo de os vir a olhar de forma oposta se um outro contexto me der deles uma imagem diferente. Por motivos distintos, ontem Passos Coelho e hoje António Costa são casos exemplares dessa análise mais pragmática que ideológica.

Agrada-me a disponibilidade mental para aprender com pessoas de ideias divergentes e, por vezes, antagónicas, mas isso parece mais difícil no período em que vivemos. Julgo não ser enganadora a constatação de que o nosso cenário mediático actual é dominado por indivíduos identificados com uma visão social da condução política. De facto, parecem ser em menor número os comentadores ou influenciadores que encontram antena para as suas ideias liberais ou conservadoras. Embora tal não possa ser provado sem um estudo adequado, arrisco dizer que poderá existir alguma correlação entre o menor espaço mediático ocupado por vozes críticas da situação política e do rumo económico que temos seguido, e o crescimento do número de descontentes que são atraídos pelo populismo de perfil mais radical, anti-sistema e profundamente intolerante.

É assim com desolação que observo que a intolerância se converteu numa das mais fortes marcas sociais da actualidade, tendo alastrado a quase todas as facções. Confesso, no entanto, que, trinta e tal anos volvidos sobre o extraordinário duelo político que dividiu o país entre os que entoavam o Pra Frente Portugal (hino da candidatura presidencial de Freitas do Amaral) e os outros, aqueles a quem os primeiros, indistintamente, chamavam comunas, o que mais me custa é assistir à inversão de posições no seio dos que ainda resistem ao apelo do extremismo. São as vítimas de outrora que hoje praticam a desvalorização prévia de alguém, ou das suas opiniões, tantas vezes ainda por conhecer, simplesmente porque esse alguém é “de direita”. Perante opiniões de sinal contrário, menosprezam-nas com comentários do tipo “pois, sendo alguém de direita, não era de esperar outra coisa”.

Esta tese mostra bem a triste inversão de mentalidades. Dentro do campo democrático, antes a intolerância era uma arma sobretudo dos mais conservadores. Hoje, infelizmente, sinto que, no debate das ideias, é mais usada por quem se considera progressista. É o domínio da lógica “se não concordas comigo, certamente és de direita”. E isso, desculpem, não é de esquerda!

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