Hoje é dia de reflexão. E como é dia de reflexão regressamos todos, colectivamente, à condição infantil de eleitor manipulável à guarda dessa vigilante severa que é a Comissão Nacional de Eleições.
Hoje, neste sagrado dia de reflexão, manda a ortodoxia e estabelecem as normas vigentes que o país entra em black-out. Não, não é bem apenas black-out: é como que fechado numa mina funda, sem luz e sem som, de forma a que não lhe chegue qualquer sinal do que se passou nos dias, semanas e meses que terminaram às 24 horas de sexta-feira.
Hoje, sacrossanto dia de reflexão, temos de reflectir sobre o que não pode ser noticiado, relatado, mostrado, divulgado, investigado ou comentado. Tudo porque no entendimento vigente ao fim da campanha eleitoral também corresponde o fim de qualquer referência noticiosa a essa mesma campanha eleitoral.
Estamos perante um absurdo, um arcaísmo herdado do cuidado com que foram feitas as leis para as primeiras eleições depois do 25 de Abril – há mais de 44 anos –, uma prática em tudo desajustada dos dias que correm.
Compreende-se que exista um dia de pausa entre o fim das campanhas e a ida às urnas, um espaço de respiração entre o frenesim das “arruadas” e demais folclore cada vez mais desajustado deste tempo que vivemos e o domingo em que a maioria dos cidadãos vota. Pelo menos compreende-se enquanto mantivermos esta forma de votar.
Mas é completamente disparatada a imposição do silêncio mediático total que é imposta por uma leitura dogmática do artigo 61º da Lei Eleitoral, que define o que é propaganda eleitoral. Diz então esse artigo que “Entende-se por propaganda eleitoral toda a actividade que vise directa ou indirectamente promover candidaturas (…), nomeadamente a publicação de textos ou imagens que exprimam ou reproduzam o conteúdo dessa actividade.”
Na leitura da Comissão Nacional de Eleições, que tem feito lei e jurisprudência nas últimas décadas, o jornalismo também é propaganda pois reproduz por textos e imagens (e já agora também sons) o conteúdo das campanhas eleitorais. Em consequência dessa leitura absurda, nenhum jornal em papel pode este sábado imprimir uma linha que seja sobre a campanha, nenhuma rádio ou televisão pode estar a dar conta do que se passou nas últimas horas da campanha e nas publicações online, como o Observador, tivemos de proceder, à passagem da meia-noite, à ridícula tarefa de retirar da nossa homepage todas as notícias, reportagens, comentários, opiniões, especiais, fact-check e tutti quanti que se relacionasse com a campanha, ou pudesse ser com ela relacionado, uma diligência pueril pois nenhum desses trabalhos desapareceu do nosso site ou deixou de estar à distância de um click de qualquer leitor interessado.
Naturalmente que nada disto faz o menor sentido, nada disto contribui para a serena reflexão dos cidadãos, nada disto reequilibra eventuais desequilíbrios de meios no jogo da propaganda eleitoral, nada disto faz sentido no século XXI e no meio comunicacional do século XXI.
Primeiro que tudo, como já reconheceram até aqueles que fizeram estas leis há muitas décadas, a simples introdução do voto antecipado criou duas realidades distintas: a dos portugueses que podem votar sem dia de reflexão e a dos que não só necessitam de um dia de reflexão, como um total black-out informativo.
Depois, nunca fez sentido confundir as acções de campanha propriamente ditas com noticiá-las, analisá-las e comentá-las. Jornalismo não é propaganda, nenhuma lei imporá essa distorção, nenhuma Comissão Nacional de Eleições pode querer impor ad eternum essa leitura insidiosa da lei.
Também não faz sentido tapar o sol com uma peneira. No tempo da Internet e das redes sociais a circulação da informação não para por decreto, a cloud não se esvanece por milagre, nada deixa de continuar à disposição de todos.
Com uma agravante: com o jornalismo proibido no dia de reflexão, o que quer que fique por esclarecer das últimas notícias de campanha é deixado nas mãos de quem não tem de seguir as regras do jornalismo, e nenhuma Comissão Nacional de Eleições conseguirá jamais quebrar o fluxo de informação que circula “entre amigos e amigos de amigos” nas redes sociais, informação certa ou errada, equilibrada ou manipulada.
Nas últimas horas desta campanha tivemos esta sexta-feira episódios que justificariam que hoje os jornalistas estivessem a procurar esclarecê-los melhor, a dar-lhes mais enquadramento, a recordar episódios semelhantes, no fundo a carrear informação que poderia ajudar os eleitores a reflectir. Mas não podem. Os jornalistas este sábado estão amordaçados.
A continuação deste status quo – vou mais longe: o mantermo-nos neste pântano – é intolerável. No passado, há quase 30 anos, impulsionei um movimento de desobediência cívica destinado a acabar com o absurdo de em Portugal não se poderem publicar sondagens depois de iniciada a campanha eleitoral, uma norma arcaica que também herdáramos das primeiras eleições democráticas. A verdade é que foi possível mudar a lei.
Mais recentemente também foi possível mudar a lei dos debates entre candidatos depois de uma interpretação vesga da Comissão Nacional de Eleições os ter na prática inviabilizado.
É pois chegado o momento de exigir ao próximo Parlamento que reveja estas normas absurdas. Caso contrário os jornalistas devem seriamente considerar o seu dever de desobediência cívica num próximo acto eleitoral e num próximo “dia de reflexão”.
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