No livro que Luís Rosa lhe dedicou, o ex-governador do Banco de Portugal revela que, em 2016, aquando da substituição de administradores do BIC, o Primeiro-Ministro lhe telefonou, a recomendar-lhe que não maltratasse a filha do Presidente angolano. Perante isto, a atitude do Primeiro-Ministro é quase inexplicável. Por um lado, declarou-se ofendido na sua “honra pessoal”, e instruiu o seu advogado para processar Carlos Costa; por outro, enviou um SMS ao mesmo Carlos Costa a confirmar que lhe telefonou e que lhe teria dito que a saída da dita administradora era “inoportuna”. Não se percebe. Que ofendeu António Costa? Pelos vistos, não foi o facto de ter sido acusado de pressionar o Governador do Banco de Portugal — o que, como Marques Mendes lembrou na apresentação do livro, é tão grave como interferir num processo judicial –, mas apenas que Carlos Costa lhe tivesse atribuído a frase “não podemos tratar mal a filha do Presidente de um país amigo“. A honra do Primeiro-Ministro é apenas semântica? A frase incomoda-o, mas o acto não?

Marques Mendes, ao apresentar o livro, destacou o que lá é contado sobre a venda do Banif em 2015, explicando que deveria interessar ao Ministério Público. Sem dúvida. Mas o livro é importante também de outra maneira: permite reconstituir a ponte entre o governo de José Sócrates, e o governo de António Costa. Muita coisa contribuiu para turvar essa ligação. A prisão e a acusação de Sócrates ajudou os socialistas a reduzirem o socratismo a Sócrates, e Sócrates a uma mera questão pessoal e judicial. A queda de Ricardo Salgado, o principal aliado de Sócrates, criou a ideia de que acabara uma época. O apoio parlamentar do PCP e do BE levou a que o governo de António Costa fosse visto, mesmo pelos críticos, como algo de inédito. O contraste entre a austeridade de Costa a partir de 2015 e o despesismo de Sócrates em 2009 serviu igualmente para apagar os traços da continuidade. Foi assim possível que um conjunto de ministros, secretários de Estado, assessores e activistas de imprensa e redes sociais, todos totalmente comprometidos com Sócrates, renascessem imaculadamente, sem marcas do passado. Tratou-se sem dúvida da mais fantástica operação de branqueamento da história desta democracia.

A comparação entre Sócrates e Costa faz, no entanto, todo o sentido. Deixemos de parte o alegado aproveitamento pessoal, por Sócrates, do seu cargo público. Deixemos também de parte personalidades. O resto, que é o que importa politicamente, é o mesmo. Nos anos 1990, Costa e Sócrates deixaram de acreditar no socialismo para acreditar na Terceira Via. Nos anos 2000, depois do fracasso de Guterres, até na Terceira Via deixaram de crer. Nunca mais tiveram uma “visão” para o país. O que desenvolveram foi uma técnica de poder: a ocupação do Estado, e o uso do Estado para dominar a economia e a sociedade. Não, isso não foi uma idiossincrasia de Sócrates. É a cultura de toda uma geração do PS. É o que vemos na contínua colonização partidária da administração, e na invasão e ocupação de todo o tipo de instituições e de empresas. Nos últimos anos, a fragilidade da economia facilitou-lhes as conquistas, ao diminuir a capacidade de autonomia e de resistência da sociedade civil. A pressão sobre o Governador do Banco de Portugal – nomeadamente, segundo Carlos Costa, para nomear gente ligada ao PS — faz parte desse mundo onde o partido do Governo é um deus na terra. No seu tempo, Sócrates aspirou a um poder que António Costa neste momento exerce. O projecto político de domínio e controle foi sempre o mesmo.

Por fim, talvez valha a pena notar o comentário do Presidente da República. Perante a aparente confirmação, pelo próprio Primeiro-Ministro, de que pressionou um supervisor financeiro independente, resolveu lembrar que a filha do Presidente angolano tinha afinal sido afastada do BPI. Como se esse desfecho, em outro banco, bastasse para esquecer o que pode ser entendido, no episódio do BIC, como um caso de irregular funcionamento das instituições. Ora, se a Constituição encomenda alguma coisa ao Presidente da República, é zelar pelo “regular funcionamento das instituições”. O Presidente não se limitou a defender o Primeiro-Ministro. Renunciou, por momentos, à sua função. Julgará o Presidente que, num regime desvirtuado há anos pela captura do Estado por um partido, já nada mais compete ao Presidente do que disfarçar e assim, pelo menos, salvar as aparências? Nesse caso, que Deus tenha piedade de nós.

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