Eduardo Lourenço partiu este mês. Cumprira a sua missão histórica, e certamente partiu tranquilo – como tranquila fora sempre a sua forma de estar.  Tinha seguramente a consciência de que aprofundara o “enigma” daquilo que é termos uma Pátria, sermos Portugueses e amarmos Portugal.

Foi dos poucos que teve a coragem de enfrentar e pensar, em termos de identidade nacional, o cataclismo histórico que foi o fim do império. A nossa consciência coletiva como Portugueses –  aquilo que nesse “enigma” constitui o fulcro da nossa unidade nacional – ficou-lhe com uma dívida que não poderá pagar jamais, porque estabeleceu as bases da psicologia coletiva para a permanência e missão histórica de Portugal para além do império:

“O fim de um regime que parecia adaptado à realidade portuguesa como uma luva, o final de um império de quinhentos anos, o regresso obrigatório ao nosso espaço europeu do sec. XV não deram lugar a nenhum reexame ou exame espetacular da nossa imagem … [que] quase poderia dizer-se saiu fortalecida…. No final do ciclo do império, ficámos de certo modo aliviados e inclusivamente justificadamente orgulhosos por constatar que a estrutura da nossa hiperidentidade, a nossa dupla identidade de povo europeu não hegemónico e de povo … disseminado e sobrevivente no espaço imperial, tinha fundamento.” (As citações seguintes são de “Nós e a Europa, ou as Duas Razões”, Eduardo Lourenço, edição INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, abril de 1994, e de “O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português”, Eduardo Lourenço, Publicações D. Quixote, 1978).

Eduardo Lourenço pensou as consequências do fim do império para o nosso enquadramento num mundo que passámos a olhar de forma completamente diferente depois de 11 de novembro de 1975, dia da proclamação da independência de Angola.

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Em termos de passado histórico, ao mesmo tempo que olhava para trás reconciliando-nos com positividade, dava-nos a conhecer mais uma faceta daquilo que nos define enquanto povo português: “O mau uso da ideologia colonizadora que pudemos ter feito em algum momento da nossa história não invalidou, ao cabo, aquilo que também havia de positivo, de ecumenismo prático, vivido na complexa aventura da Fenícia moderna que é Portugal, … temperada pela humanidade de um povo … que nunca se encontrou fora de si mesmo … no vasto mundo”.

Em termos de vizinhança peninsular, no contraste com a Espanha, reiterou que o nosso futuro não podia jamais ser ibérico, tais as diferenças identitárias que nos separam: “ao contrário da Espanha, que é múltipla na relação consigo mesma, Portugal é, por assim dizer, exageradamente uno. Nessa condição … Portugal, o de ontem e mais ainda o de hoje, nunca teve, nem tem, propriamente, problemas de identidade. Se tem problemas dessa ordem, ou seja, de interrogação ou dúvida sobre o seu estatuto em quanto a povo autónomo, inconfundível, serão, mais bem, problemas de superidentidade. … Todos os portugueses são, ou sentem-se, por assim dizer ‘hiperportugueses’.” Efetivamente, Portugal encarou de forma totalmente diferente de Espanha a questão da perda do império. Enquanto Espanha caiu numa situação traumática, que afetou o tecido político, cultural e social durante um longo período de depressão coletiva, exemplificado na Geração de 1898, a perda do império português não levou a uma crise de identidade nacional.

Em termos do regresso ao espaço europeu, Eduardo Lourenço enquadrou-o com naturalidade, porque os portugueses “já eram “superlativamente europeus … quando a Europa se definia no mundo como continente intermédio … Já provámos que não podíamos ser “digeridos” como portugueses, inclusivamente porque a nossa vocação mais profunda, como mitificou Pessoa … é a de estar no mundo como em casa.” Portugal apresentou-se perante a Europa em 1986 em igualdade de posicionamento com Espanha e isso constituiu o culminar de uma vontade de afirmação secular, da qual o império fora uma das expressões.

Em termos de futuro, este será necessariamente o epítome do passado, ou simplesmente não existirá: “A nossa imagem [entendida como a imagem de nós próprios, portugueses] é hoje mais serena e mais harmoniosa do que o pôde ser noutras épocas … Mas os sonhos não nos mudam. E só isso importa para poder, sem perda de identidade, perseverar numa presença nossa no mundo e do mundo em nós não demasiado indigna daquela que, no seu momento solar, nos definiu como o sonho da mediação europeia com vocação universal.

Uma das principais características do pensamento de Eduardo Lourenço, a humildade de reconhecer que não consegue abarcar o significado último do que é “ser português”, permite-lhe ver aquilo que outros não ousam enfrentar, e tomar consciência de que Portugal é “esse rebento incrivelmente frágil para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir”. No entanto, como entidade coletiva, “Não fomos, nós somos uma pequena nação que desde a hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação. Contudo, … poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou … um direito tão claro a ser tido por ‘grande’.”

É essa humildade que o impele a falar, numa das últimas entrevistas, da ideia da vida enquanto “enigma”, ideia essa que “É agora maior do que nunca. Tudo me parece mais enigmático do que aquilo que eu pudesse sonhar que fosse. Estamos confrontados com qualquer coisa para a qual não há espécie nenhuma de resposta ou, se há, é de uma outra natureza que as pessoas têm pudor de confessar, aquilo que não pode ser dito.

Uma experiência próxima do religioso?

O religioso é onde tudo se desenha, mesmo quando não sabemos. Isso que nos está falando sem nos falar.

Depois de se ter cumprido o mar e o império se ter desfeito, obrigado a Eduardo Lourenço por nos ajudar a cumprir este enigma que é Portugal.