As doenças cardiovasculares (DCV), incluindo a doença isquémica cardíaca (DIC), acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca, doença arterial periférica e aórtica, arritmias e doenças valvares continuam a ser a principal causa de mortalidade global e um dos principais contribuintes para a perda de saúde, em todo o mundo.

Só em 2022 as DCV causaram cerca de 19,8 milhões de mortes em todo o mundo, correspondendo a 396 milhões de anos de vida perdidos e outros 44,9 milhões de anos vividos com incapacidade (YLD). É importante salientar que cerca de 34% destas mortes por DCV ocorrem antes dos 70 anos e, por conseguinte, devem ser altamente passíveis de prevenção ou tratamento utilizando as muitas intervenções seguras e eficazes atualmente disponíveis.

Já em 1992, na primeira Conferência Internacional sobre Saúde do Coração, realizada em Victoria, no Canadá, sob tema “Bridging the Gap: Science and Policy in Action” (“Preenchendo a lacuna: Ciência e Política em Ação”), se identificava com base científica a problemática cardiovascular e se propunham 64 medidas, que envolviam profissionais de saúde, educadores, cientistas, agências, financiadores  e governos, para fazer face ao problema. Mais de 30 anos depois da Declaração de Victoria, em que se acreditava ser possível criar um mundo onde a doença cardio e cerebrovascular fosse rara, milhões de pessoas continuam a morrer prematuramente por DCV em todo o mundo.

Um estudo de grande envergadura, patrocinado pela Universidade de Washington, envolvendo o Journal of the American College of Cardiology (JACC), e diversas entidades estatais americadas — the National Heart, Lung, and Blood Institute (NHLBI) at the National Institutes of Health (NIH), and the Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), baseou-se nos dados do grande estudo “Global Burden of Disease) de todos os países e regiões do mundo, que envolveu mais de 10000 colaboradores,  avaliando as tendência para crescimento ou declínio das  DCV e dos Fatores de Risco durante mais de 30 anos (1990-2022),  bem como o impacto da doença por COVID-19 na saúde cardiovascular em 2020. Foram usados os metidos epidemiológicos mais modernos, nalguns casos atualizando metodologias usadas em publicações anteriores. O estudo foi publicado em dezembro de 2023 e constitui o estado da arte da saúde cardiovascular no mundo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na análise dos dados de 1990-2022, identificam-se as seguintes 5 tendências globais na Doença e no Risco Cardiovascular:

  1. Embora a taxa de mortalidade cardiovascular tenha descido, (a taxa é uma proporção), o número total de mortes CV aumentou de 12,4 milhões em 1990 para 19,8 milhões em 2022. Isto deve-se ao crescimento (que “dilui” as taxas) e envelhecimento da população e à contribuição dos fatores de risco evitáveis: metabólicos (hipertensão arterial, colesterol (LDL) elevado, obesidade, diabetes), comportamentais (maus hábitos alimentares, tabaco, álcool), e ambientais (poluição, temperaturas extremas). Todavia, a referida diminuição das taxas não foi uniforme e, ao contrário, mesmo quando corrigida para a idade, aumentou em 27 localizações. Um forte indicador de saúde – DALY (anos de vida atribuíveis, padronizados por idade e ajustados por incapacidade) aumentou em 500/100.000 para os seguintes factores de risco cardiovasculares: hipertensão arterial, hábitos alimentares, poluição atmosférica, elevação do colesterol das LDL, elevado índice de massa corporal, elevação da glucose em jejum e tabaco. Existem enormes assimetrias entre as várias regiões do mundo, sendo em geral as mais afetadas aquelas onde a população mais cresce e o número de idosos aumenta mais rapidamente – países de rendimentos baixos e médios em África, América Latina, Caraíbas, e Ásia
  1. Crescimento da carga global do risco cardiovascular. Calcula-se que em 2025 o número de pessoas com excesso de peso e obesidade ultrapasse os 4 biliões (2,6 biliões em 2020) e que a obesidade sozinha aumente de 14% para 24% nesse período. Estima-se que em 2025 haja no mudo 1.3 biliões de diabéticos, comparando com 529 milhões em 2021. Os cinco fatores de risco mais importantes listados em 2023 são a hipertensão arterial , elevação do colesterol das LDL, elevação do índice de massa corporal, elevação da glucose em jejum e disfunção renal. Entre os fatores de risco destacam-se, por ordem decrescente de importância, os seguintes:
    1. Metabólicos – Hipertensão arterial contribuindo para 2564,9 /100.000 DALYs globalmente.
    2. Comportamentais – Maus hábitos
    3. Ambientais – Inalação de partículas no ar ambiente doméstico
  1. Enorme variação regional da carga de Doença Cardiovascular. Vivemos num mundo muito desigual, onde as assimetrias geográficas se vão acentuando
    – As taxas de mortalidade por DCV são 6 vezes maiores na Europa de Leste (432,3 /10000) em comparação com os países de altos rendimentos da Ásia Pacífico (73,6/10000). A prevalência de DCV estandardizada para a idade era maior na ásia central e menor na Ásia meridional.
    – A doença isquémica do coração liderava de longe a mortalidade CV, seguida pela hemorragia cerebral e pelo AVC isquémico.
  1. Há uma carga de doença cardiovascular desproporcionada nos países de menores rendimentos. Mais de 75% da carga da DCV está na Oceânia, Europa Central e de Leste, África Sub-Sahariana, Norte de África , Médio-Oriente, Caraíbas e Ásia do Leste e Sul
  2. Há, no entanto, resultados muito otimistas como uma descida muito importante de 61,5% nas partículas do ar ambiente que se respira em casa (sobretudo provenientes dos combustíveis fósseis)

DESAFIOS

Mais que identificar o problema, confrontamo-nos com desafios cujo impacto positivo na saúde das populações, são conhecidos. Referimo-nos ao controlo efetivo dos Fatores de Risco, à deteção de doença em fase subclínica, proporcionando um seguimento mais atento, às medidas de melhoria da qualidade do ar que respiramos, às medidas que possam contribuir para atenuar as alterações climáticas e melhorar o ambiente no planeta.  Referimo-nos ainda às medidas promotoras do bem-estar social e económico dos países e populações, cujo impacto real na saúde cardiovascular é bem conhecido. Referimo-nos ainda a políticas que promovam a equidade e acessibilidade aos cuidados médicos.

A par da implementação de intervenções com efetividade comprovada, deve ser repensada uma prática que se tornou habitual, de proliferação de atos médicos com baixo (se algum) valor acrescentado, em que não poucas vezes os riscos suplantam os benefícios, bem como evitar a redundância e o desperdício. A diminuição ou abandono dessas práticas, permitiria fazer poupanças consideráveis que podiam ser reutilizadas com maior benefício para as populações.