No artigo “A República somos nós” (Observador, 18/9/2021), Sofia Madureira escreve que “quando os mecanismos do Estado de Direito nos falham, é o tempo da impotência e da impunidade”. A autora referia-se aos incidentes protagonizados por um bando de arruaceiros negacionistas (aqui catalogados pelo colunista Alberto Gonçalves como um punhado de transeuntes) concentrados em frente à Assembleia da República que cercou o restaurante onde Ferro Rodrigues almoçava com a mulher, e que durante várias horas proferiram os mais torpes insultos e ameaças perante a passividade dos poucos agentes da PSP presentes. Estes incidentes, recorde-se, ocorreram enquanto milhares de portugueses desfilavam silenciosamente no velório do ex-Presidente Jorge Sampaio. Fonte oficial da PSP referida pelo Jornal Económico disse “não ter conhecimento de nenhuma ocorrência nem ter recebido nenhuma queixa”, o que não deixa de ser surpreendente quando se tratam de insultos e ameaças na via pública à segunda figura da hierarquia do Estado. O inquérito aos incidentes acabou por transitar para a unidade de contraterrorismo da Polícia Judiciária.
Como explicar este comportamento dócil e permissivo da PSP, que já tinha perfeito conhecimento dos antecedentes da atuação destes ativistas, os mesmos que insultaram o Vice-Almirante Gouveia de Melo à porta do Centro de Vacinação de Odivelas? O Ministro da Administração Interna não acha que está na altura de tomar uma posição pública sobre a perigosidade que estes grupos representam pelas suas ligações à extrema-direita, tal como foi referido no Relatório Anual de Segurança Interna de 2020? Também Paulo Ventura, coordenador da Unidade Nacional de Contraterrorismo, refere como umas das principais preocupações deste organismo “a ancoragem dos grupos negacionistas na órbita da extrema-direita, cujo comportamento criminal ideologicamente motivado é o terreno de eleição para atores que sofrem de desordens da personalidade antissocial, designadamente de psicopatia” (DN, 11/09/2021). As ligações dos grupos negacionistas ao universo da extrema-direita foram mapeadas em detalhe na publicação digital setenta e quatro e também bem documentadas nas últimas edições da “Sábado” e “Visão”.
O nosso Estado de Direito está a falhar no combate ao ativismo negacionista que em 18 meses extravasou o espaço do direito de opinião e liberdade de expressão para se tornar sucessivamente numa ameaça à saúde pública, instituições democráticas e segurança nacional. Está na altura de seguirmos os exemplos que nos chegam de fora. Nos Estados Unidos da América, na sequência de incidentes com negacionistas com ligações aos supremacistas brancos e infetados com o coronavírus que foram para estabelecimentos comerciais tossir e cuspir para cima dos utentes, o Departamento de Justiça considerou essas ações como terrorismo devido ao vírus “se enquadrar na definição de agente biológico”. Ao longo de 2020/21 assistimos também à detenção de vários médicos de movimentos negacionistas acusados de incitamento à violência e terrorismo: o alemão Heiko Schöning, fundador do movimento Doctors for Enlightenment e inspirador dos Médicos pela Verdade, o cardiologista suíco Thomas Binder, o húngaro György Gődény, e a americana Simon Gold, dirigente do America’s Frontline Doctors, pela sua participação na invasão do Capitólio. Na África do Sul, onde entre 1999 e 2008 se registaram mais de 300 mil mortes por SIDA devido à política negacionista do presidente Thabo Mbeki, foram adotadas em 2020 duras medidas de criminalização contra os negacionistas da Covid-19: “Any person who intentionally exposes another person to COVID-19 may be prosecuted for an offence, including assault, attempted murder or murder.” (Disaster Management Act, 18/3/2020)
Até à data, a criminalização da atuação negacionista em Portugal tem-se limitado à aplicação de multas e acusações por Crime de Desobediência (CP, artigo 348º). Sandra Oliveira e Silva (Faculdade de Direito da Universidade do Porto), no artigo “Entre a desobediência e a propagação de doença: como se punem as condutas irresponsáveis de contágio?” (Revista do Ministério Público, Junho 2020, número especial Covid-19) discute a possibilidade da aplicação do artigo 283º do CP relativo ao Crime de Propagação de Doença Contagiosa: “Quem propagar doença contagiosa….. e criar deste modo perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem é punido com pena de prisão de um a oito anos”. A propagação intencional de microrganismos patogénicos com o objetivo de causar doença ou morte em humanos é um crime que também se enquadra na definição de bioterrorismo do Centers for Disease Control and Prevention.
O controle da pandemia em Portugal, o aliviar das restrições sanitárias, e o sucesso da campanha de vacinação, têm contribuído para esvaziar o discurso negacionista e antivax, nada mais restando a esses ativistas que o insulto, a ameaça e a agressão. Os portugueses têm de exigir que o Estado de Direito ponha termo a esta impunidade.