Na quinta-feira, aconteceu uma coincidência de dimensões cósmicas: a “Sábado” e a “Visão” dedicaram as respectivas capas a reportagens sobre o que a primeira revista chama “movimento negacionista”, e a segunda “milícias negacionistas”. Ambas as revistas declaram ter infiltrado repórteres no submundo do “negacionismo” nacional, tão secreto que até agora ninguém dera por ele. Aliás, é possível que esse submundo nem exista de todo, e se limite apenas a estagiários de jornalismo que se espiam uns aos outros.

Ao que sei, o “movimento”- ou as “milícias” – resume-se a um juiz que apareceu nas notícias a discutir com a polícia e a um punhado de transeuntes que destrataram o dr. Ferro por motivos em nada ligados à Covid. Ouvi ainda falar nuns pequenos jantares onde algumas pessoas se mostraram irritadas com a prepotência instalada a pretexto do vírus chinês. E só. A “Sábado”, a “Visão” e a vasta maioria dos “media” andam com falta de assunto. Em compensação, andam desesperadas por inventá-lo.  No mesmo dia, o editorial do “Público” cita a “Pasionária” da praxe para jurar que, naquelas páginas, o “negacionismo” (que junta à “superstição” e às “teorias da conspiração”) não passará. E os noticiários televisivos estão repletos de “especialistas”, subsidiados ou não pela Pfizer, a exigir a proibição sumária das “ideias negacionistas”, cuja divulgação consideram um crime e um ataque à saúde pública.

A saúde alheia é a menor das preocupações desta gente. A maior é desvalorizar o adversário sem precisar de argumentos, exibição de preguiça que serve um de dois propósitos. Alguns dos que recorrem às acusações de “negacionismo” são simplórios, pobres diabos que repetem o que vêem nos “telejornais” e se convencem de que insultar o semelhante os eleva de imediato a um patamar de discernimento e iluminação. O problema são os restantes, os que usam a ladainha do “negacionismo” não para impedir a progressão da Covid, mas para calar as dissensões face ao poder político. Embora primitivo, o clássico método da difamação costuma funcionar.

O método consiste em atribuir ao contestatário, no caso ao “negacionista”, uma série de crenças avulsas, bizarras e falsas, que logo à partida o desqualificam de possuir uma opinião ponderada acerca do tema em questão. Se um maluco julga que a Terra é plana, o que o habilita a discordar do açaime nos supermercados? Sucede que, entre os meus amigos, todos candidatos ao rótulo de “negacionistas”, nem um ignora que a Terra é esférica, que o vírus chinês pode matar, que as vacinas talvez moderem um risco praticamente restrito a certos pedaços da população. Como eu, os meus amigos só desejariam que as costas da Covid não fossem largas a ponto de justificar as falências, a indiferença às demais maleitas, a supressão da democracia e a opressão generalizada. Eles, como eu, só querem reduzir a Covid ao cantinho esconso que a Covid merece. E a mania de uns chatos pensarem pelas próprias cabeças não compromete a saúde pública: aborrece as nossas estimadíssimas autoridades ou, no léxico da “Visão” e do prof. Salazar, a “ordem estabelecida”. Dado que agitar o conceito de “obediência cega” não é de bom tom, os lacaios da propaganda preferem legitimar-se com a “ciência”.

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Não mencionarei o fervor de muitos destes “cientistas” em prol da homeopatia, da acupunctura e de avanços similares. Ou a raiva com que recusam os benefícios da energia nuclear. Ou a leviandade com que rejeitam as determinações biológicas dos “géneros”. Ou a convicção com que alertam para o carácter nocivo dos alimentos transgénicos. Ou a inclinação para, das alunagens ao 11/9, engolirem tretas conspirativas que deixariam às gargalhadas uma criança de 10 anos.

Não é preciso. Basta notar que quem aponta o dedinho aos “negacionistas” é, por regra não exaustiva, esquerdista. E isso sim, exclui qualquer um da obrigação de interpretar a realidade com um mínimo de lucidez. É assaz ridículo condenar o “obscurantismo” enquanto, por exemplo, se leva a sério o sr. prof. dr. Louçã, um poço de dogmas medievais, ou o dr. Costa, a incarnação do atraso de vida, ou o prof. Marcelo, que é o prof. Marcelo. E é engraçado que a firme objecção a superstições de que fala o director do “Público” não se estenda a superstições bem mais mortais do que a Covid: tenho a impressão de que o diário nunca se coibiu de publicar apologias do marxismo e bruxedos afins. Críticas ao “certificado de vacinação”? Não passarão! Elogios ao sistema que organizou o Gulag? Sintam-se em vossa casa! A credibilidade científica de semelhante rapaziada rivaliza com a do professor Bambo.

Em suma, desconheço se há “terraplanistas” ou “criacionistas” nos perigosos gangues infiltrados pela “Sábado” e pela “Visão”. Porém, sei duas ou três coisas divertidas. Sei que não cola colar os gangues à “extrema-direita” e ao Chega, o qual esteve ano e meio indiferente aos abusos perpetrados pêlos senhores que mandam. Sei que boa parte da resistência à vacinação nos EUA não vem dos caipiras brancos da lenda e sim do Black Lives Matter (que decretou a vacina “racista”). E sei que a conversa do “negacionismo” é o típico monstro imaginário, criado para desviar a atenção dos monstros que de facto ameaçam os portugueses: a ignorância, a crendice, a trafulhice, a submissão, o oportunismo. E contra isto não há testes que cheguem, vacinas que valham ou máscaras que disfarcem.