Para as pessoas que, por estarem confinadas, não podem (!) ir votar, inventam-se engenhosas soluções e uma, ou mais, delas será consagrada um dia destes (ainda não foi no momento em que isto escrevo), no meio de declarações solenes sobre a importância do voto, a majestade da democracia e outras grandiloquências. Costa enfatizará o seu pessoal empenho em encontrar uma solução, deixando implícito que aquelas vítimas do flagelo fariam bem em lhe agradecer, votando PS; as oposições felicitar-se-ão, cada uma salientando ter dado o seu parecer desfavorável ao que não foi feito, e favorável ao que acabou por ser, com excepção talvez do candidato Rui Tavares, que tinha outra solução ainda melhor, cozinhada no lado escuro da Lua, onde geralmente medita; e Marcelo, provavelmente, perdigotará as coisas pias que há muito tempo lhe garantem, e a Cristina Ferreira (no caso desta aos gritos), invejáveis índices de popularidade.

Se não fosse assim o caso seria ainda mais grave e justificaria um outro artigo digno da atenção dos fiscais do discurso do ódio.

Sucede que todas as pessoas confinadas o estão ilegalmente: o estado de calamidade é uma invencionice óbvia para contornar os condicionalismos que a Constituição estabelece (art.º 19º) à declaração dos estados de sítio ou emergência, e o instrumento para o conjunto de arbitrariedades de 27 de Novembro último é uma mera Resolução, que consagra absurdos como prisão domiciliária por decisão de uma qualquer “autoridade de saúde”. Pode ser que se encontrem dois constitucionalistas, dezassete juristas e quatro juízes que digam que assim não se deve entender. Mas os constitucionalistas, Deus os abençoe, são um conforto para qualquer iletrado incapaz de interpretar um texto porque tendem a ver na Constituição umas vezes o que lá não está, e outras o contrário do que lá esteja; os dezassete juristas são do poder do dia, uma doença que aflige muito a classe; e os juízes, conforme vêm demonstrando com sentenças recentes para crimes de colarinho branco, mormente a demencial de que foi vítima Rendeiro, têm evidenciado um medo abjecto da opinião pública, quando não são eles próprios vítimas do tsunami histérico que um dia se originou em Wuhan e não cessa de dar voltas ao mundo.

A qual opinião foi com tanto sucesso formatada por uma comunicação social que abandonou há muito o seu papel de contrapoder que nem se dá conta (a opinião) do génio que deixou sair da caixa: pode-se tripudiar em cima de direitos, liberdades e garantias desde que haja uma maioria de cidadãos que acredite que os atropelos são feitos em nome de um bem maior, no caso a saúde pública.

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Os poderes, como é da sua natureza, agarraram a oportunidade. E tal presidente da Câmara, aborrecido com as comezinhas ocupações do trânsito, do saneamento, da recolha do lixo, abraça com zelo a missão exaltante de patrulhar a vida do seu munícipe e superintender em funções policiais, estabelecendo-lhe regras e interditos sob o aplauso e admiração dos atemorizados bons cidadãos; tal presidente de governo regional decide quem entra e quem não entra no seu território e detém perigosos infectados, declarando coisas sonoras para a floresta solícita dos microfones, que chegam a ser ouvidos – ó abençoada Covid – no estrangeiro; tal médico, enjoado de tratar doenças porque não ganha mais por isso, dado que é um funcionário público da saúde, cumpre o sonho de regular manu militari a vida dos pacientes, com o meritório propósito de só lhe aparecerem com males da senectude, os únicos que não são culpa do estilo de vida; tal polícia recebe como um justo alargamento dos seus poderes o de meter o nariz nas casas dos infectados, que na sua insondável ignorância imagina leprosos e irresponsáveis contumazes; e todos rezam hossanas ao Estado que os faz importantes e seguram com determinação o cajado de pastores da grei.

Esta porta aberta, o caminho do abuso, da prepotência, do arbítrio, só precisa da próxima ameaça, real ou imaginária, à saúde ou outro bem que o cidadão preze, para se tornar o ordinário da missa.

E nem se pode contar com a análise retrospectiva do custo/benefício das medidas. Há demasiados responsáveis, demasiadas conivências, demasiado unanimismo: quando quase toda a gente defende asneiras não resta ninguém para as censurar porque as pessoas, salvo se forem da Opus Dei, não se autoflagelam.

Quem nos (a minoria covidocéptica, no caso) pode defender no futuro? Os partidos? Ora, eles são máquinas de conquista e manutenção de poder, que não se ganha destratando os medos da massa dos aderentes. Os tribunais? Para efeito de habeas corpus sim, e no caso das multas terroristas talvez, mas isso é só para quem tem dinheiro, tempo e paciência. A opinião pública? Uma rameira volúvel, não é preciso ter uma visão conspirativa do mundo para perceber que se um qualquer conjunto de circunstâncias ou interesses levar a que o leitor/ouvinte seja bombardeado com o mesmo discurso sobre uma qualquer ameaça, a boiada estoura. A comunicação social? As redes sociais miserabilizaram os jornalistas, que passaram a ter concorrência gratuita, e não encontraram ainda a receita para oferecer algo melhor que implique investigação e contraditório mas gere recursos. De modo que papagueiam o que dizem as agências, os outros órgãos de comunicação e os responsáveis, num conúbio frequentemente pornográfico. Isto e a estranha evolução que os fez trocar a missão de informar pela de formar explica que quem quiser perceber o mundo tem de fazer mais do que apenas ler o seu jornal habitual e ouvir o seu canal preferido, sob pena de se alimentar provavelmente de esterco.

Em algum momento deixámos que a opinião pública fosse o alfa e o ómega de todas as coisas. E se no plano político ela se fracciona segundo correntes ideológicas, em assuntos onde a clivagem esquerda/direita é menos nítida já vivemos no regime de partido único.

Nestes regimes, as liberdades brilham no papel mas o governante ofende-as à medida das suas conveniências; os agentes do Estado entendem que a sua condição é a de servidor do cidadão em abstracto, e de seu superior em concreto; e os comportamentos são vigiados e regulamentados crescentemente porque o técnico sabe melhor do que cada qual o que convém à sociedade e, crescentemente, ao próprio cidadão, que aliás não é mais do que um utente.

Já era assim há bastante tempo no âmbito fiscal: teoricamente em nome da justiça e na prática da sofreguidão por receitas foi-se construindo o edifício do abuso, da prepotência e da inimputabilidade do Fisco, completo com a inversão do ónus da prova e um quadro próprio de pessoal que beneficia das suas exacções. E com isso criou-se um monstro que ninguém sabe bem como domar porque entretanto a receita se tornou essencial para alimentar o mecanismo de leilão de promessas que é o corpus da democracia como a esquerda a entende.

Solução? Talvez não haja. Não ficaríamos pior, porém, se da próxima vez que elegermos o mais alto magistrado da Nação escolhermos alguém consciente de que liderar não consiste em andar a correr atrás da multidão. Ah, e que não seja hipocondríaco.