Há sempre dinheiro para despesas sociais (incluindo educação, saúde, cultura e desporto) mas não há dinheiro para evitar ou combater a insegurança, a injustiça ou as calamidades naturais. O mais grave é que nas funções sociais do Estado, este é apenas supletivo, pois os indivíduos, as famílias e a sociedade, podem fazer muito ou quase tudo para a provisão dos bens de que necessitam, enquanto nas funções de soberania, para as quais, aliás, o Estado foi criado, só este pode desempenhar cabalmente o seu papel, só o Estado é capaz de proteger os indivíduos, as famílias ou sociedade em geral.
Apesar de muitos reconhecerem a irracionalidade e ineficácia deste enorme desequilíbrio (em Portugal, por exemplo, as funções socias do Estado absorvem 2/3 da despesa pública primária, ficando apenas 1/3 para as funções de soberania), a verdade é que quando os problemas ocorrem, na segurança, na justiça ou na proteção civil, logo surgem as referências à crónica falta de meios nos serviços a quem incumbem estas funções. Ou seja, nestas ocasiões, felizmente escassas e assimétricas, parece que apenas podemos contar com a abnegação dos profissionais de cada sector em que trabalham ou com a tradicional abnegação popular (não temos tido atentados, ciclones ou tremores de terra).
Não devia ser assim!
É certo que muitas vezes, por mais que se esteja apetrechado com recursos e organização, não se consegue evitar o pior. Neste ponto também sou dos que considera que é impossível prevenir todas as potenciais ocorrências, como também é impossível evitar a recorrência e força dos incêndios, tendo em conta as nossas características de solo, clima e ordenamento do território em sentido amplo. Também reconheço que nos últimos anos se fez um enorme esforço de apetrechamento em recursos materiais, tecnológicos e mesmo humanos (de que o GIPS da GNR é um bom passo) para acorrer a qualquer incidente de origem humana ou natural.
Mas isso não significa que não subsistam ainda fortes lacunas como se acaba de constatar em mais uma tragédia na Região Autónoma da Madeira. Aqui, sem querer referir o “eterno passa culpas” ou o comum apelo ao choradinho dos “apoios externos”, estamos claramente perante um caso de deficiente alocação dos recursos públicos, fruto da enviesada repartição das despesas do Estado às suas diversas funções a que comecei por aludir.
Em 2010 grandes enxurradas com muitas vítimas. Quase todos os anos grandes incêndios, o último dos quais já tinha bordejado a zona urbana do Funchal. Agora a tragédia maior a entrar pela urbe histórica e cosmopolita (já para não recordar o maior acidente aéreo em território português).
Com efeito, o Estado através do Governo da República, do Governo Regional e das Autarquias Locais (com impostos, taxas, tarifas, empréstimos e, obviamente, muitos fundos europeus), investiu ou gastou na Madeira, só nos últimos quarenta anos, milhares de milhões de euros (muitas vezes mais do que em Trás-os-Montes, Beira ou Alentejo) em infraestruturas, equipamentos, redes de saúde, ação social, desporto, cultura, apoio a coletividades (para além de túneis, marinas, rotundas, multiusos, museus, centros culturais, piscinas, zonas empresariais, etc.). Muito desse investimento, é inegável, trouxe bem-estar e qualidade de vida e era imprescindível para fazer face ao incontornável equilíbrio do todo nacional. Mas o ponto é outro, não podendo deixar de ser aflorado nesta circunstância.
Como foi possível fazer tudo isso e não possuir meios de limpeza de terrenos, redes de abastecimento de água capazes de primeira intervenção e mais imprescindível ainda, meios aéreos adequados (com ou sem “dual use” – socorro, evacuação e combate a acidente graves, intempéries ou catástrofes)?
Como se compreende que num arquipélago densamente povoado, densamente florestado e densamente urbanizado, tais meios não existam? Tratando-se de uma Região, relativamente distante do continente e que vive de grandes fluxos turísticos onde a confiança é determinante, maior é a surpresa e maior deve ser a vontade e o empenho para mudar o atual estado de coisas.
Acredito que muitos aleguem não se justificar na Região um investimento avultado em infraestruturas, equipamentos e recursos humanos qualificados para operar apenas em caso de emergência ou catástrofe. Porém, para esses, a resposta só pode ser uma: foi precisamente para isso que se criou o Estado. O Estado existe para prover bens públicos como a defesa, a segurança pública, a justiça ou o sistema de faróis na costa que não podendo ser assegurados pelos particulares, têm de estar disponíveis para e prevenir, evitar, reduzir riscos e perigos coletivos, bem como intervir com adequação e prontidão para os remediar, sempre que tal se torne urgente e necessário. Assim como as forças armadas e as polícias existem para garantir a paz e a tranquilidade pública e não para fazer guerras ou fomentar crimes, as forças de proteção e socorro (proteção civil) devem existir para prevenir, evitar e combater os acidentes, os incidentes e as catástrofes, mesmo que estes ou estas felizmente nunca se verifiquem.
Outros argumentarão que existem razões técnicas a impedir a utilização de meios mais sofisticados, nomeadamente a utilização de aeronaves. Aceito como plausíveis essas eventuais objeções, mas apenas se o seu estudo for retomado com urgência, objetividade e imparcialidade. Tenho confiança que o novo Governo Regional encare o assunto de frente e com as autarquias, inverta definitivamente as prioridades no investimento.
Mas voltemos ao ponto. Sei que perante estes eventos é apetecível “atirar ao boneco”, isto é, tentar encontrar o “culpado de serviço” para encher o olho mediaticamente ou tentar retirar a eventual “vantagem político-eleitoral” de momento, mas não posso deixar de fazer o alerta (se calhar mais um alerta inútil), de quem teve um contacto próximo com as áreas em causa e tantas vezes fez apelo contra a captura das funções do Estado pelas áreas sociais e empresariais mais rentistas, com o consequente enviesamento nas prioridades do Estado, em desfavor do orçamento das funções de soberania.
Defendo que continua a ser fundamental manter de forma sustentável, um Estado social capaz de apoiar os mais fracos e carenciados, mas sobretudo tem de se ter a ousadia e a razoabilidade de reorientar as prioridades orçamentais para aquilo que não sendo porventura tão eleitoralmente compensador, não dando tanto nas vistas no imediato, representará a prazo, a garantia de segurança para todos. Temos a obrigação de evitar ter um Estado forte na cobrança de recursos e na capacidade de nos endividar, refém de corporações e dos interesses instalados, mas frágil na defesa da vida e dos bens dos cidadãos que estando no seu território, só a ele cabe defender.
Por fim, sendo a proteção civil uma competência do Estado (a nível nacional, regional ou municipal), não se compreende que em todo o território português mais de 2/3 dos bombeiros continuem a ser amadores e voluntários de associações humanitárias, caso único na Europa. Afinal de contas, não interessa defender a omnipresença do Estado na economia, na educação, na saúde, na ação social ou na cultura se temos um Estado frágil, quase de porcelana, na defesa, na segurança, na justiça e mais grave ainda, na proteção e socorro.
Professor universitário