Um minuto apenas, cinco raquetes em riste e o clássico bater do martelo do leiloeiro bastaram para consumar a venda de O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar, no Palácio do Correio Velho, ontem ao cair da noite. Oferecendo até 50 mil euros acima do valor de base (300 mil euros), apenas dois licitadores privados e incógnitos disputaram um dos quadros-ícone do neo-realismo português, que os herdeiros de Manuel Torres decidiram vender, entre muitas outras obras de arte do falecido coleccionador.

O caso saltou para os jornais na última semana, com os do costume a defenderem — ainda não era sequer conhecido o valor-base — a compra do quadro pelo Estado, para a sua incorporação no Museu do Chiado. Sendo O Almoço do Trolha uma cópia descarada do estilo pictórico do brasileiro Cândido Portinari, até mesmo o seu lugar na vasta, diversificada e por vezes muito talentosa obra de Júlio Pomar foi deveras inflacionado pelas circunstâncias políticas em que foi produzido, tornando-o, como já foi muitas vezes escrito, um «símbolo de resistência». Pretender que o Estado disponha de um balúrdio de dinheiro para simplesmente armazenar um quadro no cofre de um museu, ele próprio falho de meios para satisfazer a conservação e exibição dos seus fundos e, além disso, concretizar a adiada ampliação das suas instalações, é uma vez mais fazer prevalecer a irracionalidade da gestão pública — e, mais ainda, pagar tributo e fazer perpetuar a velha hegemonia neo-realista na cultura portuguesa na segunda metade do século passado, cujos resquícios bem precisamos de sacudir de vez.

Se o Partido Comunista Português tivesse ontem disputado o quadro para exibi-lo no hall da sua sede nacional, isso teria sido, não apenas uma demonstração cabal da sua predilecção por um certo tipo de arte, como permitiria que O Almoço do Trolha fosse apreciado, com inultrapassável devoção e apreço garantido, por centenas de militantes em trânsito, em contraste com o que sucederia (ou ainda poderá suceder…) em qualquer museu público, onde raramente ele surgirá aos olhos dos visitantes.

Por outro lado, a sufocante penúria dos arquivos, museus e bibliotecas públicas (que assusta e desgosta quem os frequenta por ofício ou caturrice) será sempre agravada quando grupos de pressão, formais ou informais, conseguirem influenciar os decisores políticos para aplicarem mal os exíguos recursos de 1% de PIB para a cultura, que tanta falta fazem à exigente manutenção e ampliação do património cultural. (O caso Miró não lhes serviu de lição…) No actual estado das coisas, seria insultuoso para instituições públicas que sobrevivem à beira dum coma funcional, que actos políticos de circunstância, para agradar uns quantos e obter boa imprensa, prevalecessem sobre uma visão panorâmica dos problemas de fundo, seus constrangimentos e soluções.

No leilão de ontem, as palmas finais para o comprador do quadro de Júlio Pomar foram também o aplauso da capacidade e iniciativa dum privado sobre a dependência dum «Estado que tudo pode», mesmo quando manifestamente não pode nem deve.

Raquel Henriques da Silva chegou ao ponto de dizer que a venda deste quadro num leilão tinha o impacto de «um murro no estômago». É um óbvio exagero e uma bizarra irresponsabilidade, da parte de quem, ainda há pouco, comissariou duas exposições de arte de uma destacada instituição bancária.

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