António Guterres é, reconhecidamente, um político que fala muito. Devidamente municiado com pilhas e com um microfone, pode ficar horas a discorrer sobre economia, sobre segurança social, sobre a paz no mundo ou, mais prosaicamente, sobre filatelia ou numismática. Tudo isto sempre procurando o equilíbrio, o consenso, as flores e os corações. Atendendo a esta prolixidade, o seu pouco abonatório cognome na política portuguesa, inventado por Vasco Pulido Valente, foi “o picareta falante”. É, portanto, um homem de frases grandes, por vezes intermináveis. Mas é também, indiscutivelmente, um homem de grandes frases.
Um dia, analisando a forma como Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PSD, o forçou a aceitar, contrariadíssimo, um referendo sobre a regionalização, António Guterres atirou: “Em matéria de regionalização levou a sua avante, mas andou de vitória em vitória até à derrota final”. Mesmo vencido momentaneamente, deixou um conselho ao seu velho e grande amigo Marcelo, que liderava a oposição: “Se queres ser primeiro-ministro, a melhor coisa que tens a fazer é fazer de morto”. Afastado Marcelo (na tal “derrota final”), foi confrontado com um novo líder do PSD, Durão Barroso, e avisou-o, melífluo: “Não há uma segunda oportunidade de criar uma boa primeira impressão”
Guterres também reservou frases de efeito para os camaradas socialistas. Num dos momentos mais tensos dos seus governos, Armando Vara foi forçado a deixar a secretaria de Estado da Administração Interna depois da criação da infeliz Fundação para a Prevenção Rodoviária, uma entidade privada que generosamente recebia dinheiros públicos para exercer funções que deveriam ser do Estado. Os detalhes desta história, incluindo a proximidade do secretário de Estado aos sócios da supracitada fundação, surgiram depois de Fernando Gomes ter sido despedido de ministro da Administração Interna, onde mandava (por assim dizer) em Vara. Desconfiando de uma revanche, António Guterres ligou os dois episódios e disparou na direção de Fernando Gomes: “Roma não paga aos assassinos dos seus generais”.
Por vezes, a retórica também serviu para Guterres fazer a sua fraqueza passar por força. Em 1999, quando apresentou a sua recandidatura, acreditou piamente que ia ter uma maioria absoluta, mas acabou, apenas, com uma “quase maioria absoluta”: o parlamento ficou rigorosamente dividido com 115 deputados para o PS e 115 deputados para a oposição. Antecipando problemas, o primeiro-ministro foi à Assembleia da República ameaçar: “Quero que fiquem todos a saber que se este governo for colocado entre a espada e a parede, preferirá a espada”.
Era outra grande frase, mas não mais do que isso: na verdade, o primeiro-ministro optaria sempre pela parede. Em momentos diferentes, perante impasses que paralisaram o seu governo sem maioria absoluta, dois dos maiores conselheiros do líder socialista incentivaram-no a procurar “um confronto político que fosse clarificador”. Mas Guterres nunca quis confrontos e sempre dispensou as clarificações. Mais tarde, no livro “Segredos do Poder”, de Adelino Cunha, apareceria a justificação para a sua aversão a escolher a “espada”: “Recusei porque aquilo não levava a nada”. Mas, como se veria, foi a sua alternativa que não levou a lugar algum.
Depois de aprovar dois Orçamentos de forma precária — e, em alguns momentos, patética —, Guterres entregou os pontos na sequência de uma derrota humilhante nas eleições autárquicas com mais uma grande frase: afirmou que se demitia “para evitar que o país caísse num pântano político”. Era um erro de timing e de análise: obviamente, nessa altura já estávamos no pântano. O guterrismo é, assim, a deprimente e demasiado longa história de um político prisioneiro do seu próprio brilhantismo — capaz de falar sobre tudo, mas incapaz de escolher, impor ou reformar.
Esta semana, novamente num momento de aperto, Guterres foi ao seu arsenal retórico procurar uma frase que o socorresse numa aflição. Saiu-lhe esta: “É importante reconhecer também que os ataques do Hamas não surgiram do vácuo”. Mais uma vez, pretendendo assemelhar-se a um santo laico, tentou compreender todos os lados, tentou acomodar todos os lados, tentou abençoar todos os lados. Não surpreende: António Guterres, como seria inevitável, continua a ser o mesmo. Hoje em dia, só há uma mudança de escala. A diferença entre o “pântano político” dos anos 2000 e o pântano moral desta semana é a distância que separa Lisboa de Nova Iorque. Mas as palavras, em 2023 como em 2002, continuam a ter consequências. Como diria alguém, “é a vida”.