Para compreendermos as acusações criminais do Chega contra o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa temos de recuar ao que o Chega é mais do que atentar no que o Presidente fez. Às vezes, há situações em que é assim: só conseguimos compreender um “crime” se olharmos a quem é o polícia, não tanto a quem é o faltoso. É isso que é tão perturbador neste episódio.

Costumo comentar que o Chega é mais interjeição do que partido político. O nome reflecte-o, com verdade. O seu registo corrente é “vergonha!”, “basta!”, “chega!” e, por aí fora, escala acima. A propensão para o exagero é a característica mais saliente do Chega, o ponto de exclamação a pontuação mais frequente, a enormização a técnica reiterada.

O Presidente da República fez declarações sobre reparações devidas pelos tempos da escravatura e do colonialismo de que discordo – penso que o importante é realçarmos o facto de escravatura e factos condenáveis terem tido termo, em vez de acender ou reacender um debate tóxico, enviesado e extemporâneo. E podem dirigir-se condenações mais severas ao Presidente. Mas daí a construir uma criminalização vai um oceano de distância.

André Ventura, que é jurista (e, diz-se, altamente classificado), foi por aí que decidiu seguir. Lançou a acusação de “traição à Pátria”. Fê-lo não só como grossa tirada política, dispensada de prova, mas querendo-a no exacto sentido técnico-jurídico. E abriu a estrada para enviar o Presidente a julgamento, depois de percorrer a tramitação específica prevista para esta figura do Estado. Não quis só ferir politicamente o Presidente, como amesquinhá-lo com uma acusação criminal e enxovalhá-lo com uma tramitação judiciária.

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Abriu, tonitruante, o folclore parlamentar com o discurso no 25 de Abril e prosseguiu nos debates parlamentares que se seguiram, terminando com a apreciação na comissão – one man show: sempre André Ventura, em todos os momentos e planos. Mas a mão, que pode parecer um punho, vai realmente cheia de nada.

Faço com os leitores o que logo fiz nas redes sociais. Leiam o que diz o Código Penal para definir “traição à Pátria”: «Aquele que, por meio de usurpação ou abuso de funções de soberania, tentar separar da Mãe-Pátria ou entregar a país estrangeiro ou submeter à soberania estrangeira todo o território português ou parte dele; ou ofender ou puser em perigo a independência do País.» Onde é que as criticadas declarações do Presidente da República cabem nesta previsão? Nem de perto, nem de longe. Vejamos também o que a Lei dos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos diz para o mesmo crime: «titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar separar da Mãe-Pátria, ou entregar a país estrangeiro, ou submeter a soberania estrangeira, o todo ou uma parte do território português.» A mesma pergunta de há pouco, a mesma resposta: a acusação de Ventura não tem nada a ver com os factos e, portanto, com a lei apanhada como chibata. Zero absoluto.

O líder do Chega, porém, não satisfeito com o óbvio fracasso da “traição à Pátria”, em vez de recuar, avançou rumo à parede. Descobriu mais um crime para acusar o Presidente: “Usurpação de autoridade pública portuguesa”. Leiam a previsão do Código Penal: «quem, em território português, com usurpação de funções, exercer, a favor de Estado estrangeiro ou de agente deste, acto privativo de autoridade portuguesa.» O que tem isto a ver com o que o Presidente disse? Nada, absolutamente nada. Zero.

Criativo, qual procurador zelota, esgravatou ainda mais um crime para o menu: “Coacção contra órgãos constitucionais”. E o que é isto? A palavra ao Código: «Quem, por violência ou ameaça de violência, impedir ou constranger o livre exercício das funções de órgão de soberania ou de ministro da República.» O contraste é tão grande entre o alegado e o evidente que nem se consegue intuir de onde terá vindo a ideia, totalmente estapafúrdia, de procurar vestir este fato penal aos factos do Presidente da República. Zero outra vez.

Em suma, o líder do Chega fez o costume: carregou a metralhadora com pontos de exclamação, vestiu a interjeição de ira furibunda, exagerou em tudo quando pôde, fosse substância ou mera forma, enormizou factos e acusações, escalou pela escala acima até ao si-si-si – e tudo para quê? Para nada. Não tinha nada, nada obteve. Além de circo e chicana, de barulho e bravata, não tivemos mais nada. Puro tempo perdido.

Este modo de proceder do Chega torna evidentes as razões por que, a continuar assim, não é possível contar, infelizmente, com os representantes de 18% dos portugueses. Nem se trata do extremismo ou populismo, mas deste espalhafatoso destrambelhamento da acção política. E também deste escândalo a que assistimos da grosseira manipulação do direito. Isto não dá confiança a ninguém e não abre espaço para trabalho comum. Quem actua desta forma é porque não quer ter parceiros. Convém pensar antes de agir.

Há outro aspecto particularmente grave nas acusações criminais atiradas pelo líder do Chega contra Presidente da República: é esta tentativa de restauração dos crimes políticos em Portugal. Ao acusar o Presidente da República dos crimes de traição à Pátria, usurpação e coacção, André Ventura manifestou a vontade de ver o Presidente da República condenado a penas até 20 anos de prisão por causa das declarações que fez. Em rigor, a mera tramitação parlamentar do processo ordenado a esse propósito já repôs em marcha esse pesadelo entre nós.

O 25 de Abril quis acabar com os crimes políticos, libertando poucos dias depois os presos políticos que havia. Depois, a seguir ao 28 de Setembro, voltou a haver presos políticos, o que alastraria muito ao longo do PREC. Foi o 25 de Novembro que pôs fim a isto. Depois, nunca mais tivemos processos-crime por razões políticas, nem presos políticos. O líder do Chega pôs-nos à beira do 24 de Novembro, ou do 24 de Abril, ou de ambos. É fortemente censurável. Não estou a exagerar. Há hábitos que, uma vez retomados, não são fáceis de parar e de largar.

O Chega, depois das eleições de Março, está a mostrar-se e definir-se. Creio que não vai nada bem. O exagero satura. A inconsequência maça. A bravata constante acaba por cansar. A aliança objetiva com a esquerda desilude. A falta de capacidade construtiva farta.

É preciso lembrar que a direita não quer perder outra vez. Quer propostas e caminho, trabalho político bem conseguido. Quer Portugal cada vez melhor e o reconhecimento público duradouro de que é por causa da direita que isso acontece. Não, a ginástica e o espalhafato não nos interessam. Portugal, sim. A qualidade da democracia, com certeza. O crescimento económico e o progresso social, venham eles. O teatro do costume, não.