Imaginemos que a próxima lei de revisão constitucional introduz na Constituição a tabela dos limites gerais de velocidade na estrada, o regime jurídico das taxas do IVA, os pressupostos da responsabilidade civil por danos causados por animais, a moldura penal do crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, as regras de cálculo das pensões de velhice e os montantes de subvenção pública da investigação na área das células estaminais.
A elevação destes regimes ao plano constitucional é ridícula e censurável, e isto por duas ordens de razão interligadas. Em primeiro lugar, a afluência de matérias tão triviais no texto constitucional degrada a dignidade simbólica da Constituição como lei fundamental de um espaço público plural, alienando as bases do «patriotismo constitucional» que vincula cidadãos divididos por lealdades mundividenciais concorrentes a um pacto de vida comum. Em segundo lugar, a utilização do processo constituinte para a adopção de decisões políticas tão contingentes e contestadas constituiu uma forma de usurpação ou de fraude constitucional, porque em vez de servir para instituir as condições de autodeterminação democrática da comunidade ― a principal missão do poder constituinte numa sociedade pluralista ― serve para «entrincheirar» interesses sectários e opções ideológicas. Na verdade, quando uma parcela significativa da opinião pública portuguesa, sobretudo mas não exclusivamente à direita, defende o saneamento semântico e a dieta política do texto constitucional, está implicitamente a invocar estas considerações simbólicas e de fundo. As constituições democráticas devem ser breves na dimensão e abertas no espírito.
Admitamos com efeito que a Constituição portuguesa vigente, uma das mais longas e detalhadas no conjunto das democracias constitucionais, peca pelo lado do excesso. Que dizer então da Constituição europeia? Por «Constituição europeia» entende-se o direito originário da União Europeia ou, para usar uma linguagem escorreita e inteligível, os tratados europeus. Apesar de ninguém no seu perfeito juízo caracterizar a UE como um Estado, há um amplo consenso de que estes instrumentos jurídicos internacionais que lhes estão na base têm natureza constitucional. Nesse sentido militam razões quer de conteúdo quer de eficácia. Por um lado, os tratados instituem um processo político semelhante ao das estruturas constitucionais de tipo federal, caracterizado pela separação de poderes (entre a União e os Estados-membros e dentro da União), pela dupla legitimidade democrática (baseada em simultâneo na igualdade dos cidadãos e na soberania dos Estados) e pela vinculação do poder político aos direitos e liberdades fundamentais (consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Por outro lado, o direito da União, quer o originário contido nos tratados, quer o derivado do processo político europeu, aplica-se directamente na ordem jurídica dos Estados-membros e prevalece sobre o seu direito interno. Em tudo isto, os tratados comportam-se como uma verdadeira carta constitucional da Europa.
Todavia, contrastando com os documentos constitucionais mais lustrosos e perenes, a Constituição europeia é a mais flácida, pérfida, macilenta e obtusa das criaturas constitucionais vivas na política ocidental. As compilações que a trazem ao conhecimento de um público imaginário ocupam largas centenas de páginas herméticas e glaciais de que até os juristas mais avisados fogem como se nelas habitasse o bacilo de uma lepra intelectual. Só o tristemente intitulado Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia percorre, entre digressões intermináveis e oblíquas pelo mercado único, pelos transportes, pelo turismo, pelo ambiente, pela moeda, pela concorrência e por muitas outras diligências prosaicas da vida colectiva, e culminando nos inefáveis protocolos, anexos, declarações e coisas quejandas, páginas suficientes para fazer parecer a leitura cuidada da mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional uma empreitada cívica de proporções aceitáveis. A Constituição europeia está para o patriotismo constitucional como as obras de Jacques Lacan estão para a divulgação científica.
O mais grave, porém, ultrapassa largamente o domínio ― da maior importância em assuntos constitucionais ― estritamente emocional e simbólico. Mal maior são as consequências antidemocráticas de toda esta prolixidade constitucional. Ao verterem nos tratados opções políticas contingentes e controversas nas mais variadas esferas da decisão pública, as maiorias políticas que representam os Estados-membros no quadro de negociação intergovernamental não se limitam a transferir competências para o nível europeu mas inibem a revisibilidade das escolhas públicas no âmbito do processo político ordinário. O legislador europeu deixa de ser um actor político de pleno direito, sujeito pelo lado do Conselho ao juízo eleitoral nacional e pelo lado do Parlamento ao escrutínio eleitoral europeu, para se degradar à condição de braço executivo de um programa político construído com base em consensos internos e intergovernamentais contingentes.
O embuste democrático atingiu a sua expressão máxima no denominado Tratado Orçamental, que vincula os Estados-membros a uma estratégia orçamental que reflete uma de várias leituras macroeconómicas da crise e que corresponde a uma entre várias opções políticas que se debatem no espaço público. Claro que há um amplo consenso no sentido de que a união monetária não pode funcionar sem o respaldo de uma política orçamental coordenada, o que desde logo implica ou a desintegração da moeda única ou a cedência voluntária de soberania nacional nesse domínio. Mas uma coisa é transferir competências para o processo político europeu e outra é constituir as instituições europeias em executores do testamento político da Chanceler Merkel, forjado no âmbito de um processo negocial usurário.
Muito se tem falado nos últimos meses desse antigo e misterioso espectro que paira sobre a Europa ― o défice democrático. Há quem o identifique com uma pretensa debilidade do Parlamento Europeu no processo político europeu. Há quem diga que ele reside no excessivo protagonismo legislativo e na alegada falta de escrutínio político efectivo da Comissão. Há quem aponte o dedo às regras sobre a distribuição de votos no Conselho, que se desviam do paradigma federal da igualdade dos Estados-membros. Há ainda quem atribua grande relevância ao elevadíssimo abstencionismo eleitoral na Europa. A verdade é que se há um défice democrático europeu nestes domínios, ele só muito relativamente se distingue da realidade política dos Estados. O Parlamento europeu é hoje um co-legislador de pleno direito, o protagonismo da Comissão tem um paralelo na perda de influência dos parlamentos em relação aos executivos na generalidade dos sistemas democráticos do pós-guerra, o modus operandi do Conselho da União Europeia aproxima-se do que caracteriza o Bundesrat no modelo federal alemão, e os níveis de abstenção nas eleições internas são cada vez mais elevados nas democracias ocidentais.
O défice democrático genuinamente europeu é o que resulta dos excessos tecnocráticos e ideológicos que degradam a dignidade simbólica e a legitimidade democrática da Constituição europeia. A política europeia padece de uma capitis deminutio em muitos pontos semelhante àquela que recaiu sobre a democracia portuguesa no período que decorreu desde a aprovação da Constituição de 1976 até à conclusão do processo de profundo saneamento constitucional operado pelas revisões de 1982 e 1989. Tal como a esquerda radical se serviu então do PREC para «entrincheirar» na versão originária da Constituição parcelas importantes de um programa político regularmente chumbado nas urnas, os executivos dos Estados-membros, domesticados pela Alemanha de Merkel, amarraram a Europa indefinidamente a uma política orçamental cujo mérito deve ser julgado ciclicamente pelos eleitores nacionais e europeus. Para que a Europa tenha um futuro como projecto político comum, é bom que as lideranças nacionais abandonem a intriga de bastidores e abracem a missão de eliminar o excesso constitucional que não deixa a democracia europeia respirar.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica