Um dia, quando olharmos para trás, será estranho perceber qual foi o legado de António Costa.
António Costa foi o segundo primeiro-ministro que mais tempo governou no Portugal democrático. Mais tempo do que Sócrates, mais tempo do que Passos, muito mais tempo do que Soares. Durante oito anos, não fez uma reforma. Gabou-se de sentir “calafrios” de cada vez que ouvia a expressão “reformas estruturais”. Conduziu o governo mais rico dos últimos 50 anos em Portugal, consequência do reforço das verbas europeias e do contínuo somar de recordes no arrecadamento fiscal, e não fez nada com o dinheiro. Aumentou o salário mínimo, mas deixou enterrar o médio; distribuiu esmolas, mas só aumentou o número de pobres. Cavaco tinha o CCB e as estradas; Guterres a Expo lançada por Cavaco; Durão os estádios lançados por Guterres; Sócrates as estradas duplicadas e as eólicas; Costa deixa um buraco aqui e um pasto ali, para o aeroporto que nem sequer conseguiu decidir onde fazer.
Durante oito anos, somaram-se os desastres. Na Administração Interna, quando Pedrógão ardeu e o Estado colapsou. Quando nada daquilo alguma vez voltaria a acontecer e, afinal, aconteceu logo em Outubro. Quando agentes do SEF mataram à paulada um cidadão estrangeiro e, a seguir, simplesmente, se desmantelou o SEF. Quando o ministro andou a vender golas anti-fogo que, afinal, eram inflamáveis, e acabou a atropelar um homem na autoestrada e nem saiu do carro. Quando Costa segurou esse ministro contra tudo e todos – até alguém lhe dizer que ia perder as eleições se não o deixasse cair. Porque, durante oito anos, a única coisa que pareceu importar a António Costa foi isto: o poder. Para fazer o quê? Ninguém sabe. Ninguém viu.
Na Defesa, foi o pior ataque. Do embaraçoso roubo das armas de Tancos ao escândalo do secretário de Estado envolvido num caso de corrupção, passando pelos Leopards oferecidos à Ucrânia de que, afinal, só se aproveitavam três e pelo navio da Marinha em que os próprios militares se recusaram a embarcar e que acabaria a avariar em plena missão, meia dúzia de dias depois. Nas infraestruturas, tivemos ministros e adjuntos à pancada. Na economia, um ministro inútil, desmentido pelos seus próprios secretários de Estado.
Durante oito anos, António Costa criou os maiores governos de sempre, entre pastas que não existiram – Economia, Ciência, Cultura, Planeamento, Coesão Territorial (o que quer que isso seja), e outras cujos titulares chegam ao fim envoltos nas maiores suspeitas – Finanças, Infraestruturas, Negócios Estrangeiros. Oito anos em que a única coisa que cresceu foi o PS e os seus tentáculos, estendendo-se ainda mais pelas empresas públicas, pelos órgãos reguladores, por tudo o que mexe, e onde tudo, cada vez mais, em Portugal, depende de uma só coisa: a fidelidade a quem seja, circunstancialmente, líder do Partido Socialista.
Durante oito anos, António Costa tentou, acima de tudo, ser ambíguo. Que as suas palavras pudessem querer dizer o máximo de coisas possíveis, de maneira a nunca se comprometer com nada. Nas vezes em que arriscou não o fazer, foi o fracasso absoluto: nos médicos de família que todos os portugueses iam ter e cada vez menos têm; nos milhares de casas que se ia construir e que nunca saíram da imaginação sabe-se lá de quem. A TAP foi o símbolo do seu reinado: comprou-a de volta para a voltar a vender e nem isso conseguiu levar até ao fim. Pelo caminho, fez o país gastar milhares de milhões de euros e, o que ainda é pior, anos de vida. Para absolutamente nada.
Mas o mais estranho, o mais inexplicável, foi a bazófia. Durante oito anos, António Costa deixou acumular o que tentou desvalorizar como “casos e casinhos”. Incompetências, mentiras, acusações de corrupção dentro do seu governo, entre pessoas cada vez mais próximas do seu círculo. Se, a princípio, ainda tentou manter a uma distância de segurança a tralha socrática, a dado momento chamou-a, como agora se vê, para dentro do seu próprio gabinete. E apesar de tudo, de todos os avisos, de todo o histórico, continuou a cantar de galo, cada vez mais alto, cada vez mais arrogante, de forma cada vez mais gratuita, por pura e simples exibição da mesma coisa: o poder.
Na semana passada, tentou achincalhar o Presidente, a oposição, o regime, colocando o ministro cuja cabeça há tanto tempo Marcelo pedira a encerrar o debate do Orçamento – e a dar-se ao cinismo supremo de citar essa mesma “sua excelência” Marcelo. Parecia ter tudo sob controlo – mais sob controlo do que nunca. Para cair, afinal, descontroladamente e sem aviso, uma semana depois. Fica, ao menos, uma declaração digna na demissão, e uma das poucas sem ambiguidades que alguma vez logrou fazer.
Oito anos volvidos, deixa Portugal ainda mais dependente dos fundos europeus e os portugueses ainda mais dependentes do Estado. Um Estado que fez engordar de novo para números-recorde e que, no entanto, está mais incapaz do que nunca de cumprir sequer as suas funções essenciais: na Saúde, na Educação, na Defesa, na Justiça. Não conseguiu vender a TAP, não fez o novo aeroporto, não lançou a alta velocidade, não estancou a emigração, afastou investimento, agravou, drasticamente, os problemas no SNS e na habitação.
Nas escolas, os alunos não têm professores e os professores não têm habilitações. Nos hospitais, falta tudo, dos instrumentos mais básicos aos próprios médicos. Na habitação, chegámos ao triste ponto em que um ordenado médio no país não chega sequer para pagar a renda de um apartamento exíguo na capital. António Costa deixa uma economia que se alimenta de duas coisas: turismo e impostos; uma, volátil; a outra, canibal. Sai na semana em que o Presidente do Supremo Tribunal declarou que a corrupção está instalada no país e a crescer, e no mês que o responsável máximo pelo SNS anunciou como “o pior da História”. Não são exageros da imprensa nem da oposição; são os factos.
Para isto, derrubou o líder do seu partido em pleno mandato. Não por questões ideológicas, não por uma divergência de visão para o país, mas porque ganhava por poucos, por “poucochinho”. Para isto, provocou um terramoto na política portuguesa, impedindo, pela primeira vez, que fossem os partidos mais votados pelo povo a formar governo. E com isso deixou aquele que se arrisca a ser o seu verdadeiro legado: a fragmentação da direita e o quase desaparecimento da esquerda. Em suma, o vazio. O desfecho inevitável para um homem cujo grande desígnio para o país, resta agora evidente, era deixá-lo absolutamente na mesma.
E o pior, caro leitor? O pior, receio, é o que vem a seguir.