Então, decidimos, não sei bem quando, começar a celebrar a passagem dos anos. Já não apenas as nossas, mas as do mundo. Uma pergunta ao robô de I.A. mais próximo certamente resolveria a dúvida com inquietante certeza, mas basta-nos, por agora, esta humana e imprecisa aproximação: sabendo que, até ao século XIX, não havia sequer relógios de pulso, não se está a ver o povo em grandes contagens decrescentes, reunido à volta da torre da igreja, pronto para pular de alegria à meia-noite em ponto. É uma coisa curiosa, parte daquela grande religião pagã sincrética em que vivemos hoje: atribuímos um poder ao tempo, como se algo distinguisse, verdadeiramente, o último domingo da segunda-feira seguinte. Como se não fosse uma segunda-feira como as outras. Como se o próprio domingo e a própria segunda-feira não fossem nomes – nomes que implicam regras e costumes – que damos a dias para os quais o pássaro olha exactamente da mesma forma, apardalado, desta vez, com a inesperada eclosão do fogo de artifício nos céus.

Os cães ficam muito assustados. Terá o réveillon sido uma invenção dos fabricantes de foguetes, em conluio com os produtores de vinho espumante e o poderoso lobby das uvas passas? E, no entanto, para quê negá-lo? Para quê recusar a energia que tamanha conspiração nos oferece, ano após ano, para começar de novo? Fazer de conta que pomos o contador da vida a zeros outra vez e voltar a fazer as mesmas coisas, mas melhor, sabendo o que já sabemos.

Geralmente, por volta do início da tarde de dia 1, já infringimos metade das resoluções que tínhamos para o ano inteiro: já não nos vamos levantar cedo todos os dias, já não vamos a tempo de beber menos, já não começamos o ano na praia (até porque, pelo que vemos na televisão, está ainda mais lotada do que em Agosto), já não vamos começar a correr (para onde, afinal?), já não vamos passar a fazer sempre pequenos-almoços saudáveis, nem arrancar com o yoga, a meditação, o tai chi e a escrita daquele romance imortal que fluirá, torrencial e triunfalmente, assim que resolvamos o problema de deitar cá para fora o primeiro parágrafo.

Mas qualquer coisa vai sobrar para dia 2. Uma renovação qualquer, uma esperança, um sentimento de segunda oportunidade.

2024 pode, verdadeiramente, ser um ano histórico. Para os próximos 362 dias, está previsto o lançamento dos primeiros carros voadores. Elon Musk diz que vai lançar a primeira nave para Marte, o primeiro passo rumo à colonização do planeta (mas, ei, é o Elon Musk). O homem vai finalmente voltar à Lua, na primeira missão tripulada desde 1972 – com a primeira mulher. A catedral de Notre-Dame vai reabrir, cinco anos depois do incêndio que quase a reduzia a nada. Em Portugal, vamos decidir se queremos continuar a abrir o caminho para a sociedade socialista – e a discutir onde fazer um aeroporto.

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Teremos eleições nos Estados Unidos, na Índia e no Parlamento Europeu e coisas a fingir que sim na Venezuela, no Irão e na Rússia. Guerras a entrarem pelo ano dentro na Ucrânia e na Palestina – e esperemos que em mais lugar nenhum. O Japão vai lamber as feridas outra vez e curar-se de um terramoto de grau 7,6 no primeiro dia do ano e de um acidente com um avião em chamas no segundo, que teve por vítimas mortais elementos da Guarda Costeira que iam a caminho de Niigata, para prestar socorro às vítimas do sismo.

Vamos continuar à procura de um sentido para tudo isto. A escolher acreditar ou desesperar. Com esta certeza: a fé que depositamos aos pés do altar do ano novo é uma oração que fazemos a nós mesmos. 2024 não é um deus, o tempo não é um deus. Cura e mata, mas não salva. Se o terramoto do Japão fosse aqui, já teríamos desculpa para mais um ano de resignação. O terramoto foi no Japão e, mesmo assim, alguém o usará como desculpa para mais um ano de resignação. Como usará a economia da China que, afinal, já só vai crescer quatro em vez de 5%. Como usa as doenças e as guerras dos outros para justificar os seus próprios fracassos.

O tempo somos nós que o fazemos – não se vê pela diferença entre domingos e segundas-feiras? Feliz ano novo.