Um fémur cicatrizado com 15 mil anos foi o símbolo quase perfeito da civilização humana: afinal para que sarasse aquele osso alguém teve de cuidar daquele corpo incapaz de se mover, alimentá-lo, garantir-lhe segurança, dar-lhe de beber… Isto durante várias semanas. Ou seja alguém pondo em causa a sua sobrevivência não deixou para trás aquele ferido e cuidou dele. A humanidade estava ali.

A imagem do fémur cicatrizado foi utilizada pela antropóloga Margaret Mead quando inquirida por um estudante sobre o que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização. A antropóloga não se deteve nos machados e pinturas rupestres que geralmente surgem quando se aborda esta questão e invocou o fémur partido. Aquele osso curado simbolizava a diferença entre o animal e o humano.

O dilema que a aprovação da eutanásia em geral coloca é o do fémur partido: até quando devemos cuidar do outro? A resposta não é fácil. Mas a aprovação da eutanásia em Portugal coloca este dilema a um nível ainda mais perturbante: que sociedade é esta cujos eleitos se mobilizam para assegurar mais meios a quem manifesta a vontade de morrer do que àqueles que querem viver? A lei agora aprovada na Assembleia da República garante a quem declarar a sua vontade de ser eutanasiado o direito a escolher um médico orientador. Este médico orientador tem vinte dias para produzir um relatório sobre o pedido do doente. Caso o parecer seja favorável, ao pedido do doente segue-se uma consulta com um especialista da patologia que afecta o doente. Este especialista tem 15 dias para fazer um parecer. Pode existir intervenção de um psiquiatra que também ele tem 15 dias para emitir a sua decisão.

Comparemos estes tempos de espera e procedimentos com o que acontece a quem quer simplesmente ser tratado: no Hospital de Faro, para uma consulta muito prioritária de Urologia a espera é de 95 dias. (Os “apenas” prioritários têm 323 dias de espera pela consulta!) Na Oftalmologia prioritária espera-se 108 dias e na não prioritária 630. Quanto à Psiquiatria, a melhor forma de os utentes deste hospital conseguirem uma consulta é declararem a sua vontade de ser eutanasiados: a espera varia entre 62 a 94 dias. Já em Setúbal, no Hospital de São Bernardo, tem de se esperar 129 dias por uma consulta de Cardiologia Prioritária, repito Cardiologia Prioritária. No Garcia da Orta os muito prioritários esperam 30 dias por uma consulta de Neurocirurgia e 96 na Pediatria muito prioritária. Note-se que a estes tempos de espera se deve adicionar o tempo de passagem do processo do médico de família para o hospital. E se das consultas passarmos para as cirurgias verifica-se que até no que se imagina absolutamente prioritário, como é o caso da Cirurgia Vascular, os prazos ultrapassam os garantidos a quem pedir eutanásia: no Hospital de Faro esperam-se longos 19 dias por uma Cirurgia Vascular muito prioritária (por uma normal são 940 dias).

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Já se asseguraram melhores cuidados de saúde em Portugal. E quando nos confrontamos com esse facto, em vez de o enfrentarem, os deputados, para iludirem a crescente divergência entre o anunciado e o vivido, produzem legislação que é um insulto para quem aspira a ser medicamente assistido para viver.

O absurdo a que os deputados nos conduziram é este: a forma mais rápida que os 203.051 portugueses que no início deste ano estavam inscritos para cirurgia (e muito particularmente os 42 mil que já aguardavam por essa cirurgia há muito mais tempo que o máximo estabelecido) têm ao seu alcance para serem observados por um especialista é manifestar o seu desejo de ser eutanasiados. Na verdade assim conseguiriam ser medicamente assistidos de forma rápida na especialidade de que precisam, como ainda seriam assistidos no estabelecimento público, privado ou de índole social que escolhessem, pois os senhores deputados acharam por bem determinar que “Cumpridos todos os procedimentos o doente pode escolher o local onde quer que seja concretizada a eutanásia”. E esta poderá ser praticada “nos estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde e dos setores privado e social que estejam devidamente licenciados e autorizados para a prática de cuidados de saúde, disponham de internamento e de local adequado e com acesso reservado”.

Porque não estendem os senhores deputados às grávidas que andam a contar contracções enquanto procuram uma urgência aberta o direito a ir “aos estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde e dos setores privado e social que estejam devidamente licenciados e autorizados para a prática de cuidados de saúde, disponham de internamento e de local adequado”? Ou só temos parcerias público privadas para assegurar o cumprimento da ideologia?

Estas perguntas são a nossa versão do dilema do fémur partido. Esse dilema que nos liga a esse alguém caído por terra, revolvendo-se na dor e na condenação à morte mais que certa que aquela fractura então representava. E também a esse outro alguém que durante dias zelou para que aquele corpo recuperasse. Esse dilema que nunca resolveremos porque ele é inerente à nossa condição humana mas a que esperávamos ir respondendo o melhor possível em cada época. O que perturba é saber que estamos a viver tempos em que deixámos de fazer o melhor que as circunstâncias do nosso tempo nos permitiriam para passarmos a fazer o que a ideologia determina.

O fémur cicatrizado vai dando lugar à espinha dobrada.

PS. Como é óbvio não faltam polémicas em torno das circunstâncias em que esta explicação terá sido dada por Margaret Mead e do seu alcance. São polémicas a acrescentar às muitas em torno desta antropóloga e de muitos dos antropólogos que como ela preencheram o imaginário dos “bons selvagens” que tanto animaram o século XX. Não deixa de ser irónico que os relatos de Mead sobre o pensamento das crianças da Nova Guiné ou a sexualidade das jovens da Samoa, que tanto entusiasmaram os progressistas pretéritos, se tenham tornado agora alvo de críticas pelo progressismo contemporâneo. O facto de a antropologia cumprir no mundo pós-comunista de hoje o papel que a economia desempenhou para os marxistas até à queda do Muro de Berlim explica este revisionismo: os antropólogos sucederam aos economistas na criação da grelha através da qual se está autorizado a ver a sociedade, onde antes estavam classes estão agora comunidades.