A desastrosa decisão de Putin de invadir a Ucrânia está a produzir consequências muito para além das fronteiras da Rússia e da Ucrânia. Uma dessas consequências – que não está certamente entre as mais graves mas é uma das mais interessantes para quem segue a política europeia – é o rápido declínio da direita europutinista. Um dos pilares da política externa russa nas últimas duas décadas foi o de cultivar e estimular movimentos radicais (à esquerda e à direita) nas democracias ocidentais. Essa política tinha como objetivos por um lado gerar instabilidade e fragmentação nos países ocidentais (em especial no que diz respeito à política externa e de defesa) e, por outro, tentar criar pontos de apoio favoráveis à política externa russa no interior dos sistemas partidários das democracias ocidentais.

À esquerda, os aliados preferenciais da política externa russa encontram-se, sem surpresa, numa linha de continuidade com os tempos soviéticos. Como os partidos comunistas ortodoxos que mantêm alguma relevância eleitoral vão rareando nas democracias ocidentais (a sobrevivência do PCP faz com que Portugal seja uma pouco honrosa excepção a este respeito), é nos novos movimentos e partidos de esquerda radical que o Kremlin tem encontrado os seus melhores aliados. Não espanta por isso que partidos como o Podemos ou o Bloco de Esquerda tenham passado as semanas anteriores à invasão russa a criticar ferozmente a NATO, os EUA e o “governo de extrema-direita” ucraniano e que, mesmo agora, se oponham ao fornecimento de armas à Ucrânia e apelem à paz em moldes que só se poderiam traduzir numa rendição incondicional do país invadido e na sua total submissão a Putin. Uma orientação aliás similar à seguida pelo britânico Jeremy Corbyn e pelo francês Jean-Luc Mélenchon.

Foi no entanto à direita que Putin inovou mais nas últimas décadas, promovendo a imagem de um líder forte, conservador e defensor da cristandade que procurava contrastar com o declínio ocidental. Este exercício, apesar de ter bases frágeis considerando as muitas e notórias debilidades e problemas internos da própria Rússia, encontrou eco considerável em vários movimentos de direita radical e populista em ascensão na Europa ao longo dos últimos anos.

Os dois casos mais notórios e significativos são Marine Le Pen e Matteo Salvini, figuras cimeiras do grupo político europeu Identity and Democracy (ID) e líderes que até muito recentemente não disfarçavam a sua proximidade política e pessoal com Putin. Le Pen, uma feroz opositora da NATO, tem uma relação muito próxima e de longa data com Putin, havendo inclusivamente indícios de financiamentos com origem russa às suas campanhas eleitorais. Salvini, por sua vez, elogiava frequentemente Putin e chegou até a apresentar-se no Parlamento Europeu com uma t-shirt com o rosto do presidente russo – um momento que lhe foi justamente recordado quando visitou a cidade polaca de Przemysl, na fronteira com a Ucrânia, pelo presidente da câmara local que o confrontou com uma t-shirt idêntica e lhe disse: Não te vou receber. Anda ver o que o teu amigo Putin fez.

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Ainda que essa não seja certamente neste momento a principal preocupação de Putin, a verdade é que a invasão da Ucrânia liquidou também esse meticuloso trabalho de anos a cultivar e fomentar uma direita europutinista. O caso francês fornece uma boa ilustração, com a decisão de Putin a dar uma preciosa ajuda a uma reeleição folgada e ao reforço de Macron ao desgastar consideravelmente Marine Le Pen, Eric Zemmour e Jean-Luc Mélenchon. A invasão coloca seriamente em causa também os esforços promovidos, entre outros, por Viktor Orbán para promover uma aproximação entre os grupos europeus ID e ECR (European Conservatives and Reformists), que muitos viam como provável no contexto pós-Brexit. Os Conservadores britânicos, fundadores do grupo ECR, tinham sempre vetado qualquer aproximação ao grupo ID, em boa parte por causa das posições de política externa de Marine Le Pen, vistas como problemáticas e excessivamente próximas de Putin. No contexto do ECR, a invasão russa reforça necessariamente o cepticismo dos polacos do PiS e dos checos do ODS, ao mesmo tempo que dá um importante argumento aos Fratelli d’Italia de Giorgia Meloni no combate político interno contra a Lega de Salvini e permite também ao Vox reforçar as suas críticas aos sectores da esquerda espanhola tradicionalmente próximos de Putin.

Quanto ao Chega, que se juntou ao grupo ID, acaba por ter sorte por a juventude do partido e a pouca relevância internacional de Portugal se terem conjugado no sentido de evitar que haja registos passados comprometedores similares aos de Le Pen e Salvini, o que até permite a André Ventura aconselhar publicamente os seus homólogos europeus a aprenderem com o “erro” de se terem associado a Putin.

Uma coisa parece no entanto certa para os principais partidos da direita europutinista: a invasão tornou politicamente insustentável manter a proximidade com Putin, restando assim a opção de abandonar o putinismo ou, em alternativa, abandonar a sua relevância política nos respectivos países